A indústria têxtil em Bairro e Sanfins

 

     Perde-se na bruma do tempo a memória da  indústria têxtil no Vale do Ave. Tudo terá começado num «antiquíssimo  e laborioso movimento de transformação do linho». Bairro e Sanfins não escapam a este processo. Se consultarmos as Inquirições de 1220 e de 1258 no que respeita a Bairro e Sanfins ou outras freguesias desta região do Vale do Ave, encontraremos referências que não deixam dúvidas sobre esta questão.  Podemos observar que foros e rendas eram pagos  em cereais, vinho e outros produtos da actividade agrícola, mas também em varas (1) de bragal, ou seja, em linho, o que indicia claramente que havia produção deste tecido. A tradição de cultivar, fiar e tecer o linho já vinha certamente ainda mais de trás, diz-se que pelo menos do tempo dos romanos. De resto, deriva do latim grande parte da terminologia relacionada com o linho como os termos bragal, braga, estriga, estopa, fuso, tomentos e tantos outros. Por outro lado, a partir do achado de utensílios destinados à sua produção, há mesmo quem faça recuar até ao Neolítico a produção deste tecido na região. Não admira que esta actividade tenha estado tão fortemente enraízada na cultura camponesa local.

     De facto, ligados à  auto-suficiência da vida rural, os trabalhos de fiação e tecelagem surgem na região como complemento natural da actividade agrícola, essencialmente como trabalho feminino que aproveitava os tempos vagos proporcionados pela sazonalidade típica da agricultura para transformar o linho ou a lã. «Fiava-se, com a roca à cintura, em casa, de dia ou ao serão, ou andando de guarda do gado pelos lameiros abundantes na bacia do Ave, também propícios à cultura do linho nos tempos apropriados». Não havia casa agrícola que não tivesse o seu tear, para transformação do fio em tecido. Pode dizer-se que havia um casamento perfeito entre as actividades agrícolas e as de cultivo, fiação e tecelagem do linho.

     Sabe-se que a 14 de Março de 1463 D. Afonso V doou vitaliciamente a João Vaz de Almada todos os direitos de pão, vinho, linho, legumes e outros, de Pereira e de Noura. Assim, parece que, nessa altura, continuava a cultivar-se o linho na quinta de Pereira e, provavelmente, em outras propriedades da região.

    Mas, volvidos cinco séculos sobre as Inquirições de D. Afonso III, em 1758, se consultarmos as «Memórias Paroquiais», verificamos que os párocos de Bairro, Sanfins e das restantes freguesias do Julgado de Vermoim não mencionam o cultivo do linho, pelo que é legítimo supor que se tal actividade não desapareceu completamente tinha tão reduzida expressão que nem merecia referência. Mas, se não se cultivava o linho ou se cultivava muito pouco, isso não significa que tenha desaparecido a fiação e tecelagem do linho. 

     Pelo contrário, o linho tornara-se pouco a pouco objecto de uma cada vez maior circulação comercial pelas feiras e mercados. Esta grande procura de panos de linho, explica a gradual autonomia da tecelagem como actividade profissional, separando-se da agricultura e assumindo-se como ofício independente. O divórcio entre a agricultura e o fabrico do linho estava consumado. O salto para a intensificação que levou a produção para além do uso doméstico já tinha sido dado e explica-se pelo desenvolvimento do mercado. Começou a gerar-se uma dinâmica comercial em que Guimarães e,  um pouco mais longe,  o  Porto eram os centros em que desenrolavam os processos de uma troca que se estendia a espaços geograficamente bastante amplos.

     A partir de certa altura difícil de balizar no tempo não pode deixar de se assinalar a presença de regatões (2) que circulavam entre Guimarães e Porto e tinham no linho e na linha as suas principais mercadorias. Compravam em Guimarães e nas áreas envolventes e vendiam em feiras e mercados da área do Porto, fazendo igualmente chegar o produto a outros locais bem mais distantes. Sabe-se que em 1512 terão saído de Guimarães cerca de cem mil varas de pano de linho e de estopa, o que é uma quantidade considerável tendo em conta que a produção era totalmente manual, pelo que já envolvia muita gente com emprego neste ramo de actividade. Também se produzia cordame e treu, que era pano para velas de embarcações. Este último produto era comercializado em boa parte em Vila do Conde e pelo porto desta vila rumava a outros destinos. Por esta altura os linhos de Guimarães eram famosos pela sua alta qualidade, designadamente pela «alvura do tecido e pela finura da linha». O linho era, sem dúvida, o maior negócio da vila de Guimarães. 

     Em finais do século XVIII várias oficinas do Vale do Ave começaram a transformar-se em manufacturas, não no sector tradicional do linho, mas sim no das sedas e algodões. Em 1812, no antigo Julgado de Vermoim, havia já um número considerável de tecelões colectados para efeitos fiscais, como mostrou José Viriato Capela. O inquérito industrial de 1845 confirma esta continuidade do trabalho do linho nesta área geográfica, mas já evidencia a produção de tecidos de seda e de veludos, o que supõe, neste último caso, a integração do algodão como uma parte da matéria-prima utilizada. Pequenos fabricantes de tecidos de linho e algodão proliferavam no Vale do Ave, especialmente nos concelhos de Vila Nova de Famalicão e Guimarães, numa densa rede de pequenas oficinas e de trabalhadores domiciliários, dinamizados e patrocinados pelo «mercador linheiro», que fornecia a matéria-prima para recolher depois o produto transformado, o que ampliou a tradição dos serviços por tarefa. Era o processo designado por «sweting system», ou de «exploração do suor», que potenciava ao máximo o trabalho ao domicílio. Em 1881, Oliveira Martins calculou existirem cerca de 30 mil tecelões manuais, a maioria a produzir por conta dos comerciantes de panos.

     O inquérito industrial de 1890 mostra claramente que o algodão já se instalara definitivamente nas localidades com tradição de tecelagem do Vale do Ave e que estava a substituir o linho de forma acelerada. Havia no concelho de Vila Nova de Famalicão 627 «oficinas ou casas de trabalho» algodoeiras, consideradas «pequena indústria», logo ocupando escassos trabalhadores cada uma (853 no total), das quais apenas 26 unidades industriais algodoeiras, com oito operários ou mais, uma das quais em Bairro. Muito rapidamente o algodão ganhou um papel determinante, por via das inovações revolucionárias do trabalho industrial, o que o transformou num produto popular, de baixo custo, também devido ao grande alargamento das áreas de cultivo nos EUA. Além disso, o algodão permitia a produção de uma grande variedade de produtos diferentes, o que possibilitou uma alteração radical dos costumes no modo de vestir pelo mundo inteiro e até alguma uniformização, através das chitas, dos cotins, das flanelas e de outros tipos de tecidos.

     Por esta altura, no Vale do Ave, as fábricas de grande dimensão eram muito poucas e situavam-se noutros concelhos, como a Fábrica de Negrelos (3), fundada em 1845, na margem esquerda do rio Vizela, em S. Tomé de Negrelos. Os inquiridores de 1890 manifestam admiração que não tenham surgido até aí iniciativas empresariais de maior envergadura no concelho de Vila Nova de Famalicão nestes termos: «Talvez cause estranheza a quantidade de pequenos fabricantes que existem na parte nascente do concelho e que não haja quem os organize em grandes fábricas, onde possam aperfeiçoar o fabrico. É contudo um facto. A falta de capital, e também de iniciativa, tem conduzido a este resultado. Agentes dos comerciantes do Porto e Braga, mediante uma comissão por peça de cotim, fornecem ao fabricante o algodão, e uma vez feito o tecido pagam um tanto por metro».

     Em 1890, uma das maiores unidades algodoeiras do concelho de Vila Nova de Famalicão pertencia a Narciso Ferreira e situava-se em Riba de Ave. Já empregava 51 operários, 35 dos quais mulheres e dispunha de cerca de 50 teares manuais. Ele era natural de Pedome, filho de um caseiro de terras e fez a sua aprendizagem numa oficina de um tecelão local. Em 1881, com 19 anos, estabelecera-se com dois teares na casa dos pais. Produzia tecido e dava a tecer ao domicílio para vender nas feiras da região e no Porto, onde tinha alguns clientes. Casou em Riba de Ave onde passou a residir e, em 1888, adquiriu uma casa junto do rio Ave onde estabeleceu a oficina a que se refere o inquérito de 1890.

     Como ele próprio procedia à venda da produção aos clientes, isso levou-o a travar conhecimento com comerciantes e capitalistas do Porto. Nas inúmeras conversas que teve com alguns desses comerciantes começou a esboçar-se a ideia de uma organização fabril em grande escala. Assim, em 24.06.1896, foi feita a escritura da constituição da firma Sampaio, Ferreira & Cª., proprietária da Fabrica de Fiação, Tecidos e Tinturaria de Riba de Ave, que iniciou a sua actividade com 200 teares mecanizados. A instalação desta fábrica representa um marco importante na industrialização do concelho de Vila Nova de Famalicão por ser a primeira grande unidade a instalar-se e por constituir o ponto de partida para outras iniciativas na mesma região.

     A partir da iniciativa do mesmo grupo foram criadas muitas outras empresas em Riba de Ave e noutras localidades próximas, como é o caso da Fábrica de Fiação e Tecidos de Bairro e da Empresa Têxtil Eléctrica, também conhecida por Fábrica de Caniços, igualmente em Bairro, que iniciou a sua actividade em 1905, com fiação e tecelagem, idealizada para a produção de cotins e cobertores e para trabalhar a energia hidroeléctrica produzida na própria fábrica, o que representava uma inovação para a época, por ser a primeira concebida nestes moldes. 

     A Fábrica de Fiação e Tecidos de Bairro tinha uma sucursal em Lordelo, a Fábrica do Vau, cujo edifício fabril foi autorizada a ampliar em1920. A Empresa Têxtil Eléctrica também efectuou no decurso do tempo várias obras de modernização e ampliação, sendo de destacar, no ano de 1935, a ampliação da sua fábrica de fiação e tecidos e, em 1952, a construção de uma plataforma sobre pilares, no rio Ave, destinada a receber as paredes de uma nova secção de caneleiras.

     Pela iniciativa doutros empreendedores e comerciantes de panos, foram criadas novas empresas em Delães, Pedome e Bairro. No que respeita a esta última freguesia, referiremos os casos da Fábrica de Mira-Ave, de Madeira & Pereira, ou da Fábrica de A. J. da Silva Pereira (4), embora para além das quatro empresas atrás referidas tenham funcionado em Bairro muitas outras de muito menor dimensão. Mais tarde, na década de 60, foi criada a Fábrica de Mira-Fios. Assim, com início na década de 1890 e com continuidade nas seguintes, em Famalicão, adensa-se a malha fabril no eixo hidrográfico do Ave, numa propagação gradual às diversas freguesias.

     A tendência para a concentração fabril no Vale do Ave é em grande parte a resultante das opções de investimento de comerciantes  do Porto que acabaram por reconhecer as vantagens da região em relação a outras: mão-de-obra abundante, terrenos baratos, águas para produção de energia hídrica e para tinturaria e acabamentos, um operariado dócil.  Aqui havia uma longa tradição na produção de têxteis, que se tinha iniciado com o linho. Não havia mulher que não soubesse usar a roca e o fuso para fiar. Além disso, o Vale do Ave tinha passado a dispor de uma linha férrea entre Porto e Guimarães, iniciada em 1871, chegou a esta cidade em 1884, com prolongamento a Fafe em 1907, o que permitia fazer chegar com rapidez as matérias-primas necessárias à laboração e, obtido o produto, levá-lo ao destino. Tudo vantagens visíveis no sucesso das fábricas já ali existentes, o que levou muitos negociantes e capitalistas a associarem-se a pequenos industriais para a constituição de empresas algodoeiras, para as quais forneciam capitais e geriam à distância. Na maior parte dos casos, a fábrica era no Vale do Ave e a sede social da empresa no Porto. 

     Quando se implantaram nesta região as primeiras empresas têxteis de grande dimensão a partir do século XIX, outra indústria ligada aos têxteis, a de confecção de vestuário, não a acompanhou e só muito mais tarde começou a ter alguma expressão. Durante muitas décadas as empresas têxteis produziam fios e tecidos e estes seguiam para o mercado pelos canais normais de distribuição até chegarem ao consumidor final. Este adquiria os tecidos num qualquer estabelecimento comercial e depois mandava confeccionar as peças de vestuário pretendidas num alfaiate ou numa costureira. Em qualquer cidade, vila ou aldeia não faltavam oficiais desses ofícios, quase sempre auxiliados por outros colaboradores, incluindo aprendizes. As fábricas de confecção de vestuário ou não existiam ou tinham reduzida expressão. Só a partir dos anos 60 do século passado começaram a vulgarizar-se. Na maior parte dos casos tratava-se de pequenas unidades que funcionavam em barracões ou outros locais mais ou menos improvisados, realidade que ainda hoje subsiste. Em Bairro também foram criadas várias empresas deste ramo, mas sem terem uma dimensão comparável à das empresas de fiação e tecidos que aqui se haviam estabelecido antes.

Notas:

(1) - Vara é uma medida de comprimento usada na época com cerca de um metro e dez centímetros.

(2) - Regatões e regateiras compravam os géneros por grosso para os vender depois a retalho por conta própria ou por conta doutrem.

(3) - A Fábrica de Negrelos ou do Rio Vizela iniciou a sua actividade na margem esquerda do rio Vizela, mas depois de um incêndio, em 1922, passou para a margem direita do mesmo rio, para S. Miguel das Aves.

(4) - Pode ver-se através do Youtube um filme sobre Famalicão dos anos 40 do século passado, do conhecido cineasta português Manoel de Oliveira, intitulado «Famalicão» 40, em que são mostradas algumas imagens da fiação da fábrica de Silva Pereira. Trata-se de um documento do maior interesse para quem queira conhecer a realidade do concelho da primeira metade do século XX.

Anexos: Através do Sr. Amaro F. Alves, uma sua sobrinha, Drª. Ana Luísa Alves, fez-me chegar às mãos um texto do Prof. Jorge Fenandes Alves da FLUP intitulado «Fiar e Tecer - uma perspectiva histórica da indústria têxtil a partir do vale do Ave», editado pela Câmara Municipal de V. N. de Famalicão, que contém um extracto de um acordo colectivo de trabalho para a indústria de fiação e tecelagem dos distritos do Porto e Braga, publicado em 21 de Agosto de 1942, e uma foto da cantina da Empresa Têxtil Eléctrica. Pelo interesse que os assuntos possam ter para os nossos visitantes, anexamos o referido documento para consulta.