A estação de Negrelos
Quando foi construída a linha do caminho de ferro de Guimarães, que ligaria a Trofa àquela cidade, os promotores deste investimento não tinham dúvidas sobre o percurso da mesma entre a Trofa e o ponto de confluência do Ave com o Vizela, no lugar de Caniços da freguesia de Bairro. A partir desse ponto, perfilavam-se duas hipóteses: podia continuar na margem do rio Ave, passando por Riba de Ave e depois prosseguir para Guimarães ou, então, seguir na margem do rio Vizela. A opção pela segunda hipótese em grande parte ficou a dever-se ao facto da direção da Fábrica de Negrelos ter manifestado interesse em que a linha passasse junto às suas instalações. Tinha fortes argumentos a seu favor, visto que era a maior empresa da região e oferecia a possibilidade de tornar-se também o maior e melhor cliente da Companhia dos Caminhos de Ferro de Guimarães, o que teve um peso muito significativo nos estudos de viabilidade económica deste projeto de investimento.
A Fábrica de Negrelos tinha sido fundada em 1845 na freguesia de S. Tomé de Negrelos, na margem esquerda do rio Vizela. Mais tarde as suas instalações foram ampliadas e estenderam-se para a margem direita do rio, em terrenos de S. Miguel das Aves, mas continuava a ser conhecida por Fábrica de Negrelos. Tinha um problema muito sério: nessa época não havia boas estradas ou outras vias de comunicação; o transporte de mercadorias ainda era feito em carros de bois ou carroças, o que tolhia o desenvolvimento da sua atividade. A chegada do caminho de ferro era, por isso, um velho anseio que finalmente se concretizava. Em 31 de Dezembro de 1883 foi inaugurada a linha de Guimarães, que tinha uma estação nas proximidades da fábrica, a que foi dado o nome de estação de Negrelos, apesar de estar situada em S. Miguel das Aves. A partir de então, o algodão e outras matérias primas chegavam à fábrica pelo caminho de ferro e daqui seguiam os produtos fabricados pela mesma via.
Em S. Miguel das Aves todos compreendiam que a chegada do caminho de ferro era muito importante para o desenvolvimento da terra, mas nem todos apreciavam que a estação se chamasse Negrelos, nome de freguesia vizinha. Entre os descontentes estava o pároco da freguesia, Joaquim Carlos Lemos, mais conhecido por Pe. Joaquim da Barca.
Por outro lado, os habitantes de S. Tomé de Negrelos tinham orgulho em que o nome da sua terra tivesse sido dado à estação que ficava na outra margem do rio. Entre todos eles destacava-se o pároco da freguesia, António Maria Monteiro Brandão, mais conhecido por Pe. António de Xisto.
Por causa do nome da estação, em 1930, aqueles dois abades, apesar de serem amigos, envolveram-se em acesa e truculenta disputa nas colunas do «Jornal de Santo Thyrso». Para que se fique com uma ideia do tom desse despique, apresento a seguir uma resposta dada em 14.09.1930 pelo Pe. António de Xisto ao seu opositor.
Resposta do Padre António…
Negrelos, 14-9-930
Lendo no último número do “Jornal de Santo Thyrso” a correspondência das Aves, veio-me à lembrança o camponês que embirrava com os "paus de ferro" e o Dom Quixote, que supunha ver num moinho de vento um inimigo temível a esgrimir lanças; e notei que o amigo Padre Lemos foi duma infelicidade pasmosa ao pretender dolosamente dissecar e refutar a minha prosa plumitiva, testa, brava e indignada!...
Eu e os meus patrícios não confundiremos o sexo macho com o sexo fêmea. Ficamos sabendo que as fêmeas Aves, por si protegidas, têm quatro penas e o macho Negrelos tem oito e que antigamente tinha nove, mas que lhe foi cortada uma.(*)
Negrelos está aqui de cima com vida e saúde, as Aves ficam-lhe aos pés. A linha férrea e o rio separam o macho das fêmeas, não se misturam. Morra descansado e em paz.
V. Reverência tem a estuar-lhe no peito três amores: o amor da religião, que professa exemplarmente, o amor da família, que idolatra, e o amor das peregrinas e queridas Aves, que o entusiasma e apaixona.
É seu sonho dourado engrandecê-las com bons caminhos e estradas, casas bem construídas e alinhadas e que tenham inscrita a ouro, como brasão fidalgo, a palavra Aves.
Eu preferia mandar pintar uma Ave em cada casa. Ficava a matar esse símbolo onomástico. Nomes são nomes, não enchem barriga, ao passo que as Aves parecem as naturais que, preparadas com arroz, fazem um pratinho muito apreciado.
É mais estético e afidalgado pintar uma Ave , e é de mau gosto e até ridículo escrever a palavra Aves na frontaria das casas.
Quem passar de viagem no comboio, vendo escrita na Estação a palavra Aves, diz logo: “ali está uma gaiola”; e como Aves é um termo genérico, podem fazer ideia que é um galinheiro que contém galos e galinhas para despachar . Reparando que todas as casas ostentam o mesmo onomástico Aves concluem logicamente: aqui é a terra das galinhas e dos galos, porque existem muitas capoeiras; como corolário flui naturalmente que não se deve escrever a palavra Aves na estação de Negrelos nem em casa de rico ou de pobre, de contrário fica a freguesia de S. Miguel das Aves a ser conhecida por freguesia das capoeiras…
Se a lógica não é uma batata, fica provado filosoficamente que se deve conservar o nome de Negrelos na estação e não o trocar pelo ridículo Aves.
--x--
Muitas outras pérolas foram produzidas durante aquele debate. Quem tiver interesse neste tema, poderá encontrar mais textos produzidos pelos dois sacerdotes no sítio da internet «entre ambos os aves», onde este assunto foi amplamente desenvolvido.
--x--
António Maria Monteiro Brandão nasceu a 08.02.1872 no lugar de Xisto, na chamada Casa de Xisto da freguesia de S. Tomé de Negrelos. Era filho de Joaquim de Abreu Monteiro e de Emília Adelaide Ferreira da Costa Brandão. Foi proprietário da Quinta de Quintão. Em «A QUINTA DE XISTO DE S. TOMÉ DE NEGRELOS – Origens e Descendência de D. Luísa Brandão e de António Ferreira de Eça», Casas com Memória - Edição da Origens – Genealogia e História da Família – Porto, Junho 2008, da autoria de Miguel Brandão Pimenta, ns pág. 191, o autor afirma: São muito antigas as referências a essa Quintão – Quintana – da “villa” de S. Tomé, aparecendo já referida em 1258, nas inquirições de D. Afonso III. Por essa época existiam ali três casais, um deles, pertença comum do mosteiro de Vilela e de herdadores e os outros da igreja da Lagoa que os havia herdado de fidalgos (sic) da região. Na segunda metade do século dezoito a “Quintam” – termo antigo que designava uma quinta de grandes dimensões – estava na posse de Luís Ferreira, a quem a comenda de S. Salvador da Lagoa, por morte do pai, havia emprazado a propriedade. O emprazamento deu-se a 11 de Março de 1768 na presença de frei Domingos de São Joaquim, procurador do visconde de Asseca, Martim Correia de Sá, comendador de S. Salvador da Lagoa e senhor da dita propriedade. Compunha-se a Quintão de um assento de casas «alguas dellas de sobrado e telhadas com suas adegas por baixo» e outras «térreas colmaças que servem de cozinha e cortes». O acesso ao casario fazia-se por três portas fronhas orientadas «huas para sul outras para norte e outras para nascente», tudo circundado por muros altos, como se de uma fortaleza se tratasse. Rodeavam o assento das casas mais de quarenta hectares de terra, entre terrenos de lavradio e de monte. Desde essa época e até aos nossos dias o edifício principal da quinta sofreu diversas obras de beneficiação, encontrando-se alterado tanto no exterior como no interior. Vendida na primeira metade do século vinte pelo padre António Maria Monteiro Brandão, a quinta da Quintão encontra-se hoje em mãos estranhas à família.
Joaquim Carlos Lemos nasceu em S. Miguel das Aves, no lugar da Barca, na chamada Casa da Barca, a 04.07.1882. Era filho de Joaquim José de Lemos Guimarães, proprietário, natural da freguesia de Santa Cristina de Serzedelo, e de Júlia Sabina de Magalhães, natural de Barcelos, neto pela parte materna de Basílio Cândido de Magalhães e Joana Emília Pinheiro de Lacerda, natural da freguesia de Bairro, bisneto de Balbina Pinheiro de Lacerda, trineto de Rodrigo António Pinheiro de Lacerda, o que morreu em 1809 no decurso da segunda invasão francesa na batalha de Carvalho de Este. Foram seus padrinhos o avô materno atrás mencionado e a tia Maria José de Araújo, mulher de Vitorino Pinheiro de Lacerda, do lugar de Pousada, freguesia de Bairro.
A foto que abaixo se apresenta é do padre Joaquim da Barca.
Nota: (*) - Antigamente, quando a linha de Guimarães foi inaugurada, a palavra Negrelos grafava-se com dois ll: Negrellos.