Os bracari e os gróvios

     Está muito divulgada a ideia que os povos que habitaram a Lusitânia são a base etnológica dos portugueses. Isso não é inteiramente verdadeiro. É-o para o centro e para o sul do país, mas não para o norte. A Lusitânia (em latim: Lusitania) era o nome atribuído na Antiguidade ao território da Península Ibérica onde viviam os povos lusitanos desde o Neolítico. Após a conquista romana passou a designar uma província romana da Hispânia, cuja capital era Emerita Augusta (actual Mérida).

     A Lusitânia romana incluía quase todo o actual território português a sul do rio Douro, mais a Estremadura espanhola e parte da Província de Salamanca. Tornou-se uma província romana a partir de 29 a. C., no tempo do imperador Augusto, e permaneceu vinculada a Roma até 411, data em que passou para o domínio dos Alanos.

     A norte do rio Douro situava-se outra província romana: a Galécia (Gallaecia), que se estendia para leste até às Astúrias.  Dentro desta província havia povos de diversas etnias, entre os quais os bracari (1) e os gróvios. Os bracari eram conhecidos por esta designação provavelmente por usarem bragas, isto é, umas calças curtas ou calções muito diferentes do trajo usado na mesma época por outros povos. Trata-se de uma antiga tribo celta da Galécia que vivia no noroeste do território que hoje é Portugal, na província do Minho, entre os rios Douro, Tâmega e Cávado, em torno da área da actual cidade de Braga, a romana Bracara Augusta, designação que alude ao povo que habitava a região. Foram eles os habitantes dos castros que abundam nesta área, que são povoados fortificados no cimo de montes por razões que se prendem com a procura de segurança por parte das populações. As casas eram, geralmente, de planta circular e aglomeravam-se em núcleos de carácter familiar. Também havia dependências para os animais e para as colheitas dos produtos que cultivavam. Este povo é que é a base etnológica das populações que habitam a nossa região, que nunca pertenceu à Lusitânia.

     Apiano escreveu que eles eram um povo muito guerreiro, que preferia a morte à escravidão. Também afirma que até as suas mulheres lutavam para defender o território. Deles há quem diga que, com muita frequência, faziam incursões nos povoados vizinhos para fazerem pilhagens. A arqueologia tem mostrado que o tipo de vida que levavam era bem menos belicista. Caçavam e pescavam (à linha e com redes), criavam gado, especialmente porcos, bois e cavalos, praticavam uma agricultura de enxada já desenvolvida. O achado na região de grãos de milho miúdo, de trigo ou de ervilhas incarbonizados comprovam a apetência agrícola destes nossos antepassados. Também levavam a cabo actividades de recolecção de espécies vegetais como a bolota, a partir da qual faziam pão depois de triturada, por vezes misturada com cereais, à semelhança do que era praticado por outros povos na mesma época. Falavam uma língua celta, como pode ser verificado numa inscrição dedicada à deusa Nabia na Fonte do Ídolo em Braga, ou no nome da sua cidade Tongobriga, em Marco de Canaveses.

     Os gróvios também eram um povo pré-romano de origem desconhecida que viveu no noroeste peninsular, sendo a sua cidade mais importante Tude (Tui). Eram devotos do deus Turíaco. São mencionados em obras de Pompónio de Mela, Plínio, o Velho, Sílio Itálico e Ptolomeu. Pompónio Mela situa-os nas terras banhadas pelos rios Ave, Cávado, Lima e Minho. Este autor considerava que todos os povos  do noroeste peninsular eram célticos, com excepção dos gróvios. Plínio também não os considerava celtas e propunha uma origem grega. Há ainda hoje na toponímia da Galiza e do Minho muitos lugares com alusão a este povo, com  por exemplo Grove, localidade galega bem conhecida. 

     A partir do século II a. C., esta região em que vivemos tomou contacto com a cultura romana, após as campanhas de Décimo Júnio Bruto (em latim, Decimus Junius Brutus), também chamado Galaico (180-113 a. C.), que entrou na Galécia depois de cruzar o rio Douro em 137 a. C. e ter vencido os galaicos (callaeci). É possível que, esporadicamente, o pudessem ter feito antes por via comercial, como terá acontecido em relação aos gregos e, talvez com os fenícios. Sobretudo a partir do século seguinte, inicia-se um lento e gradual processo de aculturação. Começa a utilizar-se louça romana de melhor qualidade que a castreja, mas também se nota que esta evoluiu procurando aproximar-se dos padrões da louça romana no que toca ao estilo ou  à funcionalidade. No que respeita à arquitectura, a evolução foi ainda mais lenta. Só na segunda metade do século I da nossa era aparecem entre nós casas de planta quadrangular e arruamentos alinhados.

     Os romanos também construíram muitas estradas e pontes que ligavam entre si as mais importantes povoações. Muitos vestígios disso chegaram até aos nossos dias, embora não seja conhecida toda a rede viária construída. No concelho de Vila Nova de Famalicão foram encontrados alguns marcos miliários (2) que respeitavam à via romana que ligava Olissipo a Cale e a Bracara Augusta. Estão classificados como monumentos nacionais. Do marco miliário encontrado na quinta de Santa Catarina, em Cabeçudos, Francisco Martins Sarmento em 1892, fez a seguinte leitura: «imperatori Caesari divi Severi filio - divi Marci Antonini nepoti - divi Antonini Pii pronepoti - divi Elii Hadriani abnepoti - divi Trajani et divi Nervae adnepoti - Marco Aurelio Antonino Pio, Felici, Augusto - Parthico maximo - Britannico, Germanico maximo - Pontifici maximo - tribunitia potestate XVII - Imperatori III, consuli IIII, proconsuli - A Bracara Augusta millia passuum X». (Imperador César, filho do divino Severo, neto do divino Marco António, bisneto do divino Antonio Pio, trineto do divino Aelios Hadriano, tetraneto do divino Trajano e do divino Nerva. Marco Aurélio Antonino Pio, feliz, augusto, partico máximo, britânico máximo, germânico máximo, pontífice máximo, VII ano de poder tribunício, III império, IIII consulado, proconsul. A Bracara Augusta X mil passos).

     Embora haja indícios de que alguns castros ainda teriam vida no século II d. C., como é o caso do castro das Eiras, em Pousada de Saramagos, é provável que o processo de romanização com aspectos de carácter político, económico e social, tenha sido decisivo para a deslocação das populações dos montes para os vales, mais adequados à agricultura de arado, que entretanto se desenvolveu. Por outro lado, as vias de comunicação que começavam a estender-se por todo o território favoreciam o comércio dos produtos que a agricultura gerava. 

     Outra marca indelével da presença romana que ainda hoje perdura no nosso dia a dia, é a própria língua que usamos para comunicar com as outras pessoas. De facto, o português teve origem no que é hoje a Galiza e o norte de Portugal, derivado do latim vulgar que foi introduzido no oeste da Península Ibérica há cerca de dois mil anos. Tem um substracto célticoresultante da língua nativa dos povos ibéricos pré-romanos que habitavam a parte ocidental da península, em especial os galaicos, de que os bracari faziam parte.  As línguas hispano-latinas, designadamente o galaico-português nascem do latim falado, trazido pelos soldados romanos, colonos e magistrados. O contacto com o latim vulgar fez com que, após um período de bilinguismo, as línguas locais desaparecessem, levando ao aparecimento de novos dialectos. Assume-se que a língua iniciou o seu processo de diferenciação das outras línguas ibéricas através do contacto das diferentes línguas nativas locais com o latim vulgar, o que levou ao possível desenvolvimento de diversos traços individuais ainda no período romano. A língua iniciou a segunda fase do seu processo de diferenciação das outras línguas românicas depois da queda do Império Romano, durante a época das invasões bárbaras no século V

     A partir de 409 d.C., enquanto o Império Romano entrava em colapso, a Península Ibérica era invadida por povos de origem germânica e eslava (suevos, vândalos, alanos, visigodos), conhecidos pelos romanos como bárbaros. Os bárbaros (principalmente os suevos e os visigodos) absorveram em grande escala a cultura e as línguas da península. Poucos vestígios linguísticos restam da sua presença, embora em muitos topónimos da nossa região essa influência seja notória.

     Começou uma nova era desde que as escolas e a administração romana fecharam. A Europa entrou na Idade Média e as comunidades ficaram mais isoladas. O latim popular continuou a evoluir de forma diferenciada levando à formação do galego-português (3) e outros dialectos locais O chamado galego-português formou-se a partir do século IX, na antiga provìncia romana da Galécia, como resultado da assimilação do latim vulgar falado pelos conquistadores romanos a partir do século II d.C. Começou a ser usada em documentos escritos a partir do século IX, embora nada se tenha conservado dessa época. Também incorporou léxico de origens pré-celta, celta, basca, germânica e provençalDesde 711, com a invasão islâmica da península, o árabe tornou-se a língua de administração das áreas conquistadas. Contudo, a população continuou a usar as suas falas românicas, o moçárabe nas áreas sob o domínio mouro, de tal forma que, quando os mouros foram expulsos, a influência que exerceram na língua foi relativamente pequena. O seu efeito principal foi no léxico, com a introdução de cerca de mil palavras através do moçárabe.

     O galego-português foi usado como língua culta, fora da Galiza e Portugal, nos reinos vizinhos de Leão e Castela.  As famosas «Cantigas de Santa Maria» (4) foram escritas neste idioma e a autoria das mesmas, pelo menos de algumas, é atribuída ao rei castelhano Afonso X,  o Sábio. A importância da língua foi tal que a literatura nela expressa se considerava a segunda mais importante durante a Idade Média. Recentemente foi encontrado o documento escrito mais antigo que se conserva dentro da actual Comunidade Autónoma da Galiza, o qual data de 1228; trata-se do Foro do bõ burgo do Castro Caldelas outorgado por Afonso IX em Abril de dito ano ao município de Allariz (Galiza, Espanha).

     O galego-português, comum à Galiza e a Portugal, teve alguns séculos de existência oficial como língua culta e plena, mas as derrotas que os nobres galegos sofreram nas guerras pelo poder em finais do século XIV e princípios do século XV provocou a dominação da nobreza galega pela castelhana, levando a que o galego fosse postergado para segundo plano em detrimento do castelhano. Pelo contrário, o português (5) durante este período gozou de protecção e desenvolvimento livre, graças ao facto de Portugal ter sido o único território peninsular que ficou fora do domínio linguístico do castelhano.

     Assim, com a conclusão da reconquista, o rei D. Dinis levou a cabo políticas em matéria de legislação e centralização do poder. Durante o seu reinado, em 1297, foi adoptado o português como língua oficial em Portugal. Até aí os documentos eram, geralmente, redigidos em latim. O idioma espalhou-se pelo mundo nos séculos XV e XVI quando Portugal estabeleceu um império colonial e comercial (1415-1999), que se estendeu a todos os continentes. O português a partir do século XV tornara-se numa língua amadurecida, com uma literatura bastante rica. Foi utilizada como língua franca exclusiva no Sri Lanka por quase 350 anos. Durante esse tempo, muitas línguas crioulas baseadas no português também apareceram em todo o mundo, especialmente na África e na Ásia.

     Notas:

     (1) - Os romanos chamaram Galia Braccata a uma região da Gália (actual França), mais tarde chamada Gália Narbonense. Deram-lhe esse nome porque os seus habitantes usavam uma vestimenta a que chamavam bracca. Eram calças ajustadas ao corpo feitas de pele de animais. Quando os romanos tomaram contacto com estas gentes nunca tinham visto nada igual e isso chamou-lhes tanto a atenção que deram ao território esse nome. Na região de Braga aconteceu algo semelhante. Esta região também estava povoada de gente que usava bragas semelhantes aos celtas da Galia Braccata e os romanos chamaram esse povo de bracari e deram o nome de Bracara Augusta à sua principal cidade. Isso faz pensar que os celtas desta região, os bracari,  fossem oriundos daquela região da Gália.

     (2) - Um marco miliário é um cilindro de granito, de dimensões variáveis, em que se inscreviam o nome do imperador romano à época da construção da via e se informava os viajantes dos milhares de passos a que ficava a próxima cidade.

     (3) - A expressão galego-português justifica-se pelo facto de, a partir de certa altura, se ter tornado a língua comum de Portugal e da Galiza. É óbvio que na altura em que esta língua começou a formar-se, pelo século IX, Portugal ainda não existia como nação independente, nem sequer existia a palavra Portugal. Por isso, esta designação só começou a ser usada muito mais tarde.

     (4) - É possível encontrá-las procurando na internet. No Youtube também se pode apreciar vídeos da execução artística destas cantigas por artistas conceituados.

     (5) - Passou a fazer sentido falar de português, visto que, embora tenha tido um passado comum com o galego, de há muito que as duas línguas têm vindo gradualmente a diferenciar-se, embora continuem a apresentar muitos traços comuns.