Algumas curiosidades sobre a Fábrica de Caniços

     A Empresa Têxtil Eléctrica, também conhecida por Fábrica de Caniços, foi fundada em 1905 por iniciativa de Narciso Ferreira, mas com o apoio financeiro de alguns capitalistas do Porto, tal como já se tinha verificado antes em Riba de Ave com a fundação da fábrica Sampaio, Ferreira & Cª e depois com a fábrica de Oliveira, Ferreira & Cª. Era Narciso Ferreira que geria estas empresas por mandado dos outros sócios. As empresas deste grupo empresarial tinham sede e escritório no Porto, na Avenida dos Aliados, onde os sócios certamente se reuniam para definir estratégias, discutirem novos investimentos e para decidirem sobre a repartição entre eles dos lucros que estas unidades geravam. Mais tarde o mesmo grupo também se interessou pelo sector da electricidade: adquiriu a Hidroeléctrica do Varosa e depois construiu a central térmica de Caniços.

     Um antigo operário da Fábrica de Caniços, Clemente Pereira Marques, que entrou ao serviço da mesma em 20.10.1911, na altura com 12 anos de idade, escreveu em 1969, um texto em apenas 4 páginas de formato A4, que, apesar de curto e por vezes confuso, contém muitos pormenores interessantes sobre a empresa, a sua gerência, máquinas e equipamentos que possuiu, artigos que produzia e diversos outros aspectos.
     O autor do texto diz a certa altura que «o gerente aqui era Narciso Ferreira, mas como era velho, poucas vezes aqui vinha», embora logo no início do seu texto Clemente Marques diga que, quando começou a trabalhar em 1911, o gerente da fábrica era José Pereira da Silva. Parece haver contradição entre estas duas afirmações. Provavelmente, no princípio, ainda antes de 1911, Narciso Ferreira vinha a Caniços com frequência. Depois, à medida que a sua idade ia avançando e com outros afazeres em Riba de Ave, onde residia, delegou em alguém da sua confiança poderes de gerência e passou a vir aqui com muito menos frequência. O escolhido para essa função foi um alfaiate de S. Mateus de Oliveira, amigo e compadre de Narciso Ferreira, José Pereira da Silva. Certamente este não tinha as qualificações nem a experiência adequadas ao exercício do cargo. Contudo, devia ser um homem da confiança de Narciso Ferreira a quem dava todas as informações relevantes e de quem recebia instruções, que seguia sem hesitações. Depois essa função passou a ser desempenhada por Américo Nogueira Gonçalves, que era caçador e que, «no tempo da caça, passava muitos dias sem aqui vir».
     Quando Clemente Marques começou a trabalhar na Fábrica de Caniços, Narciso Pereira da Silva, era «um mancebo de 16 ou 17 anos», trabalhava no escritório, que não era mais que um pequeno cubículo, «um quarto». Este era filho de José Pereira da Silva, o tal alfaiate em S. Mateus de Oliveira, e afilhado de Narciso Ferreira.
     Por essa altura, o lugar onde se edificou a fábrica de Mira-Ave «era um monte muito tosco», diz Marques. Terá sido Narciso Pereira da Silva que, provavelmente em finais dos anos vinte ou início dos anos trinta, fundou essa fábrica, que depois vendeu, voltando à Fábrica de Caniços para exercer a gerência, ainda em vida de Narciso Ferreira, que faleceu em 1933.
     Outro dos pontos focados diz respeito à aquisição dos terrenos em que a fábrica foi construída. Segundo Clemente Marques, os terrenos em que está implantada a fábrica tinham pertencido a três proprietários diferentes: à quinta da Azenha, ao Polveiro e ao Alferes, embora seja difícil descortinar a localização do que tinha pertencido a cada um deles.
     É contudo muito claro que havia uma casa de lavoura que foi demolida para a construção da fábrica. Não é referido o moinho que se sabe que existiu no local, que se pode observar em algumas fotografias antigas, anteriores à ampliação da fábrica para poente, o que implicou a demolição desse antigo moinho.
     A quinta da Azenha tinha pertencido a António José Carvalho de Moinhos e a sua mulher, Maria Teresa de Andrade, que foram lavradores e moleiros. Na altura em que foi construída a fábrica julgo que já ambos tinham falecido e, por isso, a venda dos terrenos terá sido efectuada por algum dos seus herdeiros, provavelmente pelo filho mais velho de ambos, Manuel Carvalho de Moinhos.
Quanto ao Polveiro, Clemente Marques diz que lhe tinham pertencido umas leiras «da serralharia para lá», expressão que deixa muitas dúvidas sobre a sua localização, mesmo para quem saiba onde era a serralharia. Quem era esse Polveiro? Por essa alcunha era muito conhecido em Sanfins e em Bairro um homem chamado Francisco Ribeiro, em virtude de negociar em pólvora, embora a designação correcta para quem exerce uma tal actividade seja polvoreiro. Contudo era realmente assim que era conhecido. Também tinha outros negócios. Era meu trisavô e já escrevi sobre ele neste local noutras ocasiões.
     Relativamente ao Alferes, terá vendido uns campos onde depois foi construída a creche e o refeitório. Não descobri a identidade desse alferes de que a minha avó também falava muito. Julgo que era o proprietário da agora chamada quinta Pedagógica do Centro Social de Bairro, onde tinha uma casa virada para a rua da Igreja de Sanfins, mandada demolir por Narciso Pereira da Silva, quando mais tarde adquiriu essa propriedade. Os livros de registos paroquiais nunca se referem a esse tal alferes pelo posto que teria no exército e, por isso, ainda não consegui identificá-lo pelo seu nome, filiação e outros elementos identificativos. Houve em Sanfins outros alferes, com ligações aos Vilas Boas: José Álvares Ferreira e José António Álvares Ferreira Vilas Boas, que moraram no lugar do Olival e que terão servido no Regimento de Barcelos, mas esses viveram num período muito anterior, nasceram ainda no século XVIII. Não pode ser nenhum deles.
     Segundo Clemente Marques a fábrica no início produzia apenas cotim e cobertores (lavrados e lisos). Ao longo da sua existência não diversificou muito a sua produção, o que constituiu uma das razões do seu fracasso algumas décadas depois.
     Os tintos e estufa funcionaram num barraco de madeira. Onde mais tarde instalaram as calandras e o acabamento do pano tinha sido o armazém do pano e num canto havia um pequeno compartimento em que funcionava o escritório. No primeiro andar do mesmo edifício trabalhavam as costureiras. Aí o pé direito era tão baixo que, em alguns sítios, «se chegava com a cabeça às telhas».
     No princípio a fábrica dispunha de duas turbinas para produzir energia eléctrica, mas, no Verão, por falta de água no rio, por vezes não se conseguia produzir energia para alimentar as máquinas, ficando a produção parada durante longos períodos. Em 1914, para colmatar esta situação, foi instalada uma turbina a vapor para substituir as turbinas movidas a água, quando o caudal do rio não permitia o seu funcionamento. O problema parece não ter ficado totalmente resolvido porque durante a guerra havia dificuldade em obter carvão para a caldeira. Podia utilizar-se em sua substituição lenha, o chamado rachão, o que onerava em demasia o custo da operação. Por esse motivo, nessa altura, a turbina a vapor só trabalhava de dia. Mais tarde, quando chegou a Bairro a electricidade produzida na barragem do rio Varosa, da Hidroeléctrica do Varosa, que pertencia ao mesmo grupo empresarial, a fábrica passou a dispor da possibilidade de a usar, quando necessário. Contudo, ao que parece, no início havia muitas interrupções no fornecimento de energia. O problema relativo ao aprovisionamento de energia só terá ficado definitivamente resolvido com a instalação, em 1929, da Central Térmica de Caniços, igualmente pertencente à Hidroeléctrica do Varosa.
     No início, a fábrica tinha apenas uma entrada e saída. «Era um caminho estreito que ia desde a chaminé, passava por onde está o depósito da água e pela mina». «Lá mais acima é uma quelha (...) que ia sair onde mora António de Sousa, era a casa do pai dele», ou seja, ia em direcção à agora chamada Travessa das Rampas, por onde passava a antiga estrada real.
     Nessa quelha morou o meu bisavô, Manuel Ribeiro, filho de Francisco Ribeiro, já atrás mencionado. Uma família que morou depois nessa mesma casa ainda hoje é conhecida na freguesia de Bairro pela alcunha de «Quelhas» ou «Quelhinhas». Julgo que essa mesma casa pertenceu depois a Manuel Ferreira Sampaio, antigo presidente da Junta de Freguesia. Ainda hoje existe, embora muito alterada.
     Por esse caminho entravam as matérias primas e saíam os produtos produzidos na fábrica em direcção à estação de Caniços, passando pelas agora chamadas Travessa das Rampas, Rua D. Maria II e Rua Zeca Afonso. O transporte era certamente feito em carroças ou carros de bois.
     Esta entrada e saída foi deslocada mais tarde dessa quelha para as proximidades da estrada que liga Bairro a S. Miguel das Aves, agora chamada Vila das Aves. Ficava quase em frente à rua de Pombal, junto a um edifício que ainda hoje existe, onde funcionou o escritório e a creche.

     No início a fábrica apenas produzia cotim e cobertores. «Talvez em 1917 pouco mais ou menos vieram para aqui máquinas muito antigas do ano de 1888 para fabricar fios para riscado, (...) vieram da Fábrica do Rio Vizela». Ou seja, a produção era pouco diversificada e, na maior parte dos casos, de pouca qualidade. A partir de então, para além do cotim e cobertores, passou a produzir-se riscado, mas com máquinas antigas que outros já não queriam, pelo que a qualidade do que se produzia não podia melhorar; a produção era destinada a mercados pouco exigentes, mas mal remunerada; a produtividade do trabalho era reduzida e, deste modo, não podia aumentar substancialmente; os trabalhadores tinham em geral salários muito baixos, o que sempre foi um traço distintivo desta empresa e de quase toda a indústria têxtil. É certo que a empresa cresceu na sua área de implantação para nascente e depois para poente, o número de operários aumentou chegando a ultrapassar um milhar, mas não se modernizou adequadamente e não acompanhou os avanços tecnológicos que entretanto ocorreram. Alguns destes factores estão na origem do seu fracasso e da sua morte anunciada com muitos anos de antecipação.
     Relativamente a Bairro, em especial em relação a Caniços, Clemente Marques diz: «aqui em Caniços havia a estação do caminho de ferro e apenas a casa que está em frente, que hoje (em 1969, entenda-se) é uma loja de ferragens». Uns anos mais tarde, pelo início dos anos 30, quando se construiu a estrada nova da estação de Caniços até Riba de Ave, quem saía na estação e seguia em direcção ao centro de Bairro, a primeira casa que encontrava era a que ficava em frente à estrada para a Vila das Aves, onde já havia um estabelecimento comercial, julgo que uma mercearia. Só por esta altura se construiu em Caniços a rua que ligou a fábrica à estrada, encurtando a distância para a estação do caminho de ferro e possibilitando o trânsito de viaturas automóveis, ligeiros e pesados, que começavam a circular por aqui.
     Até muito tarde, em Bairro e Sanfins, entre o rio Ave e a estrada real era uma área florestal completamente desabitada. Havia moinhos junto ao rio desde tempos remotos, que eram utilizados apenas no Verão e não serviam de habitação aos seus proprietários. No Inverno eram utilizados os moinhos junto aos ribeiros, onde era a morada dos moleiros. Com excepção de Vila Verde, só a partir do século XVIII, estas terras entre o Ave e a antiga estrada real começaram a ser ocupadas e desbravadas. É por isso que lugares como Pombal, Lagoços ou Caniços só começam a aparecer nos livros de registos paroquiais a partir dessa altura, porque antes lá não morava ninguém.