Que linda ponte de caniças!

     

     Conta-se que certa vez, há muito tempo, uma rainha passou por Sanfins e Bairro atravessando o rio Ave numa ponte de madeira que então havia, que o pároco de Sanfins, padre Diogo Ferreira da Costa, nas Memórias Paroquiais de 1758, dizia ficar situada no lugar dos Saltos. 

    Quando se soube que a rainha ia passar na ponte, os moradores das proximidades terão de início ficado empolgados com essa notícia, mas depois, ao repararem no mau estado de conservação da mesma, designadamente na falta ou mau estado das suas guardas, tornaram-se apreensivos por reconhecerem que a ponte, com o passar dos anos, tinha-se danificado tanto, que não oferecia condições de segurança a quem lá passava. Então, os moradores das proximidades, tanto de Sanfins como de Rebordões, resolveram meter mãos à obra e iniciar os trabalhos da sua reparação. Alguém terá dado a ideia de colocar caniças (1) de cada um dos lados da ponte para aumentar a sensação de segurança que queriam transmitir à ilustre visitante, o que mereceu geral aprovação.

    Quando a rainha se aproximou da ponte, deve ter percebido logo que havia ali muito trabalho recente dos moradores, que se tinham esmerado para recebê-la o melhor que podiam. Então, com visível satisfação, terá exclamado:

    - Que linda ponte de caniças!

    O povo ouviu e gostou da forma como a monarca mostrou apreço e reconhecimento pelo trabalho que tinham feito. Diz-se que a partir desse dito da rainha, a ponte e o lugar começaram a ser chamados de Caniços.

    Como todas as histórias, esta também deve ter algo de verdadeiro. Não parece, contudo, verdadeiro que o lugar começasse logo a chamar-se de Caniços, visto que, muitos anos anos depois, o censo da população de Bairro e Sanfins de 1879 citado pelo Dr. José Augusto Vieira em «O Minho Pitoresco» menciona o lugar da Ponte e não Caniços. Também num pedido de licenciamento para obras dum moinho situado perto da ponte, em 1904, para colocação de um telhado de colmo, é indicado o lugar da Ponte, do lado de Bairro, e, do lado oposto do rio, em Rebordões, o lugar de Quintão. Aliás, já nas Memórias Paroquiais de 1758, o pároco de Sanfins acima referido ao indicar as diversas aldeias da paróquia não menciona a de Caniços, mas sim a da Ponte. 

     Algumas pessoas atribuem o dito à rainha D. Maria II, que terá passado na ponte a 5 de Maio de 1852, quando esteve de visita oficial a Vila Nova de Famalicão, que ela própria tinha elevado à categoria de vila alguns anos antes, em 1840. Isso não deve ser verdadeiro, visto que na altura em que passou por Sanfins e Bairro já tinha sido construida a actual ponte há mais de 70 anos. Esta tem guardas de pedra e, por isso, não se tornava necessário colocar-lhe caniças. Assim, estes factos devem ter ocorrido antes da construção da ponte de Caniços, certamente com outra rainha.

    Quanto à ponte de pedra, devia chamar-se de Caniços desde 1780, data da sua inauguração. A ponte é designada desse modo na segunda Invasão Francesa, que ocorreu em 1809, por Arnaldo Gama, em «O Segredo do Abade», muitos anos antes da visita de D. Maria II. Aquele que lhe escolheu o nome, não o fez por acaso. Então, onde foi desencantá-lo? O topónimo já existia, era velho de séculos, senão mesmo milenar. Nas Inquirições de 1220 da freguesia de Rebordões refere-se a existência de um moinho e de três pesqueiras, (2) «...etiam Rex medium de uno molino heremo et medias de tribus pescarias». Anos depois, nas Inquirições de D. Afonso III, de 1258, respeitantes à mesma freguesia de Rebordões, diz-se que de todas as lampreias pescadas no rio Ave tinha el-rei direito a metade e até se indica os três locais onde a pesca era efectuada: Paramada, Canizo e Cova, assim: «Et dixit quod omnes quod piscaverint in fluvio Ave lampreas in loco qui dicitur Paramada, et in alio loco que dicitur Canizo, et in alio loco que dicitur Cova debent inde dare Domino Regi medictatem omnium lamprearum».  

     Todos aqueles topónimos ainda hoje são passíveis de identificação no terreno. A pesqueira de Paramada ficava entre Rebordões e Sequeirô, mas já muito próxima de Burgães. Este topónimo ainda hoje subsiste nesta última freguesia com a forma abreviada de Ramada, primeiro em lugar da Ramada e agora em Avenida da Ramada, Rua da Ramada ou em Restaurante Ramada. Paramada ou Parramada talvez derive de parra. Ramada é uma grade de ripas ou de arames para sustentar parreiras. Parece haver uma relação óbvia entre a significação do topónimo antigo e do moderno, que parece tê-lo substituído.

    Quanto a Cova, julgo tratar-se do lugar onde foi construída a central eléctrica. Talvez o nome do lugar resulte da configuração do terreno, embora o pároco de Sanfins ao responder ao inquérito de 1758 que está na origem das «Memórias Paroquiais» diga que o sítio se chama dos Saltos, o que deve estar relacionado com a existência da tal pesqueira. De facto, havia aí um açude e moinhos, tanto do lado de Rebordões como do lado de Sanfins, demolidos depois da construção da central eléctrica. Mais acima, do lado de Rebordões, ficava o lugar chamado Vila Cova, talvez devido à proximidade da tal pesqueira de Cova e à existência de uma exploração agrícola já referida em documentos antigos, sendo o arcaico «villa» do nome do lugar elucidativo quanto a isto. O Mosteiro de Santo Tirso possuia aí 7 casais em 1258. Mais tarde esse lugar chamou-se Quintão, ou quinta grande, outra forma de designar a mesma exploração agrícola.

    Finalmente, a pesqueira chamada Canizo pelas Inquirições de 1258, deve ser o açude que fica a menos de 500 metros da actual ponte, para jusante, onde, na margem esquerda, ainda se pode observar um velho moinho há muito desactivado. Devido à construção recente de uma mini-hídrica um pouco mais abaixo, o açude foi demolido, pelo menos parcialmente, e o que dele resta está quase sempre submerso e, por isso, nem sempre é visível. Depois Canizo deve ter evoluído para Canizos e Caniços. O nome talvez resulte do tipo de vegetação que existia no local quando lhe foi dado ou pode estar relacionado com as artes de pesca utilizadas na mesma remota época. Esse pequeno lugarejo era um «sítio há um século selvático e ermo» no dizer de Sant'Ana Dionísio (3) e devia ser conhecido por essa designação pelos moradores das imediações tanto de Rebordões, como de Sanfins ou de Sequeirô. O nome desse lugar ermo foi dado à ponte construida em 1780, que lhe ficava próxima, depois à ponte ferroviária, em 1883, data da sua conclusão. Mas, o que me parece determinante para o lugar ser conhecido por Caniços é o facto de, na sequência da construção da linha do caminho de ferro Porto - Guimarães, ter sido edificada uma estação e terem-lhe dado esse nome, apesar da aldeia que ficava nas imediações da ponte de madeira e depois da ponte de pedra que a substituiu ser oficialmente chamada da Ponte. A partir de finais do século XIX até finais do século XX, o lugar teve um grande crescimento devido à instalação de algumas empresas da indústria têxtil e de energia eléctrica e ainda pela existência da estação do caminho de ferro. Chegou a ser um dos maiores e mais importantes  lugares da freguesia de Bairro, estendendo-se desde o local originário até à fábrica da Empresa Têxtil Eléctrica, também chamada de Caniços. Hoje, é um lugar deprimido, com poucos habitantes, sem movimento, uma sombra daquilo que foi.

Notas:

(1) - Caniças eram entrelaçados ou tecidos de varas de vimes que se colocava nos carros de bois para amparar a carga, nos casos em que os fueiros não eram adequados ou suficientes para esse fim.

(2) - Uma pesqueira era uma construção de pedra constituida por um muro utilizada para armar artes de pesca fluvial.

(3) - Sant'Anna Dionísio, em «Velho Minho».