Limites e demarcações entre Delães e Bairro

     A partir do século XV e XVI começou a fazer-se o tombo das diversas igrejas, o que consistia em inventariar as propriedades que lhes pertenciam e até os limites territoriais das paróquias. O tombo da igreja de Delães feito em 1592 determinava os limites e demarcações entre aquela freguesia e as outras freguesias que ficavam à sua volta, incluindo Bairro. Neste caso, a demarcação foi feita de sul para norte, desde a bouça da Cerqueda, junto ao rio Ave, até ao ribeiro que passa por Caparim, que nesse documento era designado por ribeiro de Pereira. 

     Nas imagens que se apresentam abaixo está a parte do tombo que respeita ao assunto aqui em apreço, documento que consta de livro à guarda do Arquivo Distrital de Braga e pode ser consultado pela internet. Vou destacar resumidamente os principais pontos por onde passava a linha de demarcação entre a igreja de São Salvador de Delães e São Pedro de Bairro. Tinha o seu início numa cruz que estava no «penedo da banda do poente feita ao picão e dali vai correndo pelo monte acima, o qual monte se chama da Cerqueda e vai ter ao Seixido Velho, sendo que da «banda norte» é da igreja de Delães. «Vai ter pelo monte acima às pedras do Seixido» (1) e dali até à Agra do Barreiro, (2) que confronta com a leira anexa que é de Bastião Fernandes» e a cortinha de João Gonçalves, ambos de Delães, onde há uma pedra com uma cruz, que demarca o que é da igreja de Delães e de São Pedro de Bairro e do «dito campo e pedra vai correndo até ao caminho que vai para a igreja de Delães». (3) E vai pelo caminho acima e «vai ter ao penedo do cruzeiro». «Na cruz de pedra que está no dito penedo feito ao picão da banda do sul e do dito penedo vai correndo pelo caminho abaixo que vai para a igreja de Bairro descontra o poente». «E do dito caminho torna a cortar para norte na testada do campo de Amador Fernandes de Bairro e vai ter às vinhas de Pousada e vai correndo entre as vinhas e o campo acima dito e vai ter às vinhas de Francisco Gonçalves de Pousada (4) passando por dentro da dita vinha em que há um marco, que divide o que é de Bairro e de Delães. «Do marco vai sair direita para poente» passando pelo caminho que vem para as Figueiras e segue entre o «Salgueiral de Beatriz Fernandes de Caparim» e a cortinha de João Gonçalves de Delães, «chamada da Fonte» e «vai ter ao ribeiro chamado de Pereira, onde acabam os limites da igreja de Delães com São Pedro de Bairro e começam os limites com a igreja de Santiago da Carreira». No texto não é referida uma pequena cruz que existe no muro da Quinta de Pousada, que se diz que serve de demarcação entre Bairro e Delães. Em 1592 o muro talvez nem existisse. 

   Devido às muitas alterações sofridas no traçado de estradas e caminhos e à divisão de terrenos na área em apreço, é muito difícil compreender completamente o que se diz naquele texto. Mas, apesar disso, é evidente que a linha de demarcação definida naquele tombo entre Delães e Bairro está muito longe de ser respeitada na atualidade, sem que se saiba o que as autoridades locais fizeram para o contrariar. É preciso dizer com clareza que parte da bouça da Cerqueda é de Bairro, (5) que a quinta de Vila Verde de Cima é de Bairro e não de Delães, que a agora chamada rua da Agra do Barreiro é totalmente de Bairro e não apenas do lado poente, como as placas colocadas na dita rua sugerem, que a rua da Corfil só é de Delães na parte norte, sendo a parte sul de Bairro, visto que a linha de demarcação das duas freguesias, que vem da bouça de Cerqueda, tem de atravessar a dita rua para seguir até à Agra do Barreiro e outros aleijões que se podiam apontar. Havia vários marcos na linha de demarcação entre Delães e Bairro, alguns assinalados com uma cruz gravada a picão, que ao longo dos anos, especialmente na segunda metade do século XX, foram misteriosamente desaparecendo. 

     Além disso, ainda não existia a estrada que liga as duas freguesias, que só foi construída no século XX, assim como as ruas e caminhos da área envolvida, alguns das quais ou não existiam ou tinham um traçado e configuração diferentes. Tudo isto dificulta a interpretação cabal daquele documento, até porque algumas propriedades mencionadas no tombo, designadamente a Agra do Barreiro, a leira anexa que era de Bastião Fernandes e a cortinha que era de João Gonçalves, deviam ocupar espaço que hoje é da estrada e de ruas e caminhos que não existiam. Além disso, algumas propriedades foram divididas entre herdeiros. Mesmo assim percebe-se que muita coisa está hoje muito distante, no que toca à demarcação entre as duas freguesias, do estabelecido naquele documento.

     Depois da abertura da estrada, foi colocada uma placa à entrada de Delães, que ficava muito para lá da chamada rua da Agra do Barreiro e até da rua dos Carvalhais, o que mostra que essas ruas assim como a chamada rua das Chousas não podem ser de Delães. O local da colocação da placa deve ter sido escolhido criteriosamente para transmitir uma informação correta a quem passava e não consta que nessa altura tenha sofrido qualquer contestação. Essa placa, muitos anos depois, também desapareceu. Havia uma oficina de ferreiro à entrada de Delães, que se dizia ser a primeira casa daquela freguesia para quem seguia de Bairro. E dizia-se ainda que tinha sido construída sobre a linha de demarcação das duas freguesias. Penso que isso pode estar certo, ainda que possa parecer estranho que a referida placa e a casa do ferreiro não estivessem a par. Certamente a Agra do Barreiro estendia-se desde a agora chamada rua do Casino, confrontava com o terreno onde foi construída a casa do ferreiro e continuava até ao local onde foi colocada a placa. Na altura em que foi construída a estrada, o local não devia ser muito diferente do que era em 1592 e os limites das propriedades referidas no tombo ainda seriam identificáveis, designadamente a Agra do Barreiro, pelo que a interpretação do tombo era mais fácil do que é hoje e não deixava dúvidas em relação ao que era de Delães ou de Bairro. Daí que o local de colocação da tal placa não oferecesse dúvidas nem suscitasse contestação.

     Além disso, como a linha de demarcação se prolongava até ao cruzeiro da antiga igreja de Delães, que ficava em Delães de Baixo, certamente estendia-se até lá alguma propriedade de Bairro, talvez a de Amador Fernandes. A linha de demarcação passava junto ao cruzeiro, onde havia um penedo com uma cruz gravada a picão, que também já não existe. Para além do tombo da freguesia de Delães, há outros documentos que ajudariam a esclarecer alguns pontos nebulosos, se alguém quiser esclarecê-los. Há, por exemplo, uma sentença cível do ano de 1731 relativa a um emprazamento do Casal de Vila Verde de Cima, em que se diz, como não podia deixar de ser, que se situa na freguesia de Bairro e que é foreiro à igreja da mesma freguesia. Também o registo predial poderia esclarecer muitas dúvidas. No registo de algumas propriedades tidas hoje como de Delães, há-de constar que já foram de Bairro. Como se justifica que tenham deixado de ser?

     Até admito que os limites entre duas freguesias ou entre dois concelhos não devam ser inalteráveis. Mas as eventuais alterações devem ser feitas respeitando o interesse das populações e com o acordo das partes envolvidas e com mútuas vantagens. Foi o que aconteceu com a freguesia de S. Miguel das Aves, que pertencia ao concelho de Famalicão e, a requerimento dos moradores, passou para o concelho de Santo Tirso. No caso aqui em apreço, nada disso se enxerga.

     Notas:

      (1) - No tombo diz Xeixido.

   (2) - Teria que atravessar a agora chamada rua da Corfil, pelo que a dita rua para norte do local de atravessamento é de Delães, mas para sul é de Bairro. A chamada quinta de Vila Verde de Cima fica em frente ao troço pertencente a Bairro.

      (3) - Para isso era preciso passar pelo local onde agora existe a estrada nacional nº. 310.

      (4) - Francisco Gonçalves de Pousada faleceu a 01.01.1624 Os Pinheiro de Lacerda ainda não tinham chegado a Bairro em 1592, ano em que se fez o tombo aqui referido. Só mais de um século depois, em 1699, Clemente Pinheiro de Lacerda casou com Isabel Micaela de Carvalho de Freitas, filha de Francisco Dias de Pousada, talvez descendente de Francisco Gonçalves de Pousada mencionado no tombo.

      (5) - Neste local entre a Quinta de Vila Verde e o tal penedo na bouça da Cerqueda em que havia uma cruz feita a picão do lado poente é que se tomava a barca do Nuno para passar para S. Miguel da Aves. Nas Memórias Paroquiais de 1758 afirma-se que «parte do monte da Cerqueda é de Bairro», o que está de acordo com o tombo de Delães.