A freguesia de Bairro

         por Daniel Costa Pereira

     O povoamento do território que constitui a actual freguesia de Bairro é muito antigo, terá pelo menos cerca de três mil anos, visto que foi encontrada na quinta da Bouça, no início do século XX, uma sepultura de inumação datada do período designado por Idade do Bronze. (1) Junto da sepultura também foram encontrados quatro vasos e um bracelete de ouro da mesma época. O bracelete pertence agora ao Museu Nacional de Arqueologia, que funciona no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, onde se encontra em exposição. Os quatro vasos estão à guarda do Gabinete de Arqueologia da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão.

     Mais recentemente, neste mesmo espaço da actual freguesia de Bairro, coexistiram quatro paróquias diferentes: Santo Estêvão de Natal, Sanfins de Riba de Ave, S. Julião de Matamá e S. Pedro de Ranulfi. Pelo séc. XI, todas estas paróquias estavam devidamente constituídas e a elas se refere o «Censual de Entre Lima e Ave» (2)  do bispo D. Pedro, que governou a diocese de Braga entre 1070 e 1091. Por essa altura, todas essas quatro paróquias já existiam. Tudo leva a crer que a fundação de cada uma delas seja ainda mais antiga, embora não seja possível determinar com precisão as datas em que cada uma delas se formou. Nesse tempo era possível e até muito corrente nesta região a formação de uma paróquia para uma população muito diminuta. Julga-se que haveria paróquias cuja população não excederia as dez ou vinte pessoas! Bastava a existência de um ou dois casais, isto é, a existência de  uma ou duas explorações agrícolas à volta das quais se erguiam as modestas e rudes habitações dos seus trabalhadores, para justificar a criação de uma nova paróquia, embora algumas tivessem mais que isso. (3)

     A paróquia de S. Estêvão de Natal teve a sua sede onde hoje fica a chamada igreja de Sanfins. Deveria englobar a quinta de Pereira, a Carvalha, a Azenha e outras propriedades que circundam a igreja, eventualmente designadas de modo diferente, estendendo-se certamente aos lugares hoje chamados Pombal, Estrada e parte de Lagoços, por essa altura completamente desabitados. Vem mencionada no Censual acima referido com a designação de Sancto Stephano de Natal e pagava à diocese de Braga um moio de cereal por ano, o que corresponde a cerca de 408 litros.

     A paróquia de Sanfins de Riba de Ave (de Sancto Felice de Ripa Ave), como vem mencionada no Censual, ou Sanfins de Almofães (de Sancto Felice de Ermofaes), como é designada pelas Inquirições de 1220, englobava, por essa altura, as herdades de Legundia, Pereira e Ulvar, que o historiador Pe. Avelino de Jesus Costa identifica com Vilar. Desses topónimos antigos apenas Pereira se mantém. Ulvar não me parece ser identificável com Vilar, mas mais provavelmente com Olival, pelo menos este é o termo actual que corresponde àquele arcaísmo, para além de haver um lugar assim designado na paróquia, o que reforça esse entendimento. Legundia ninguém saberá ao certo a que propriedade corresponde. Talvez seja oportuno referir que Legundia é nome de mulher, agora em desuso. Provavelmente, na altura das Inquirições de 1220, a propriedade assim designada pertencesse ou tivesse pertencido a alguém com esse nome. A paróquia de Sanfins, antes de ter a sua sede na igreja de S. Estêvão, é provável que se situasse na margem direita do ribeiro de Pereira, que  atravessa a estrada que hoje liga Bairro à Carreira. A referência a Almofães na designação da paróquia poderá significar que aquele lugar, hoje pertencente à Carreira e que, em 1220, integrava Sequeirô, lhe terá pertencido no passado ou, mais provavelmente, ser um mero determinativo de fins distintivos, indicando a contiguidade dessa povoação, que chegou a ser uma paróquia no século XI, Santiago de Almofães, referida no Censual do bispo D. Pedro como Sancto Jacobi de Armulfanes. De resto o hagiónimo S. Tiago passará a ser o orago da paróquia que resultou da fusão, ocorrida entre os séculos XI e XIII, de Santa Maria da Carreira (Carraria) com Santiago de Almofães, que passou a designar-se S. Tiago da Carreira.

     Quanto à paróquia de S. Julião de Matamá, mencionada no Censual como Sancto Juliani de Mata Mala (4), não sabemos obviamente quais eram os seus limites, mas certamente englobaria, para além de Matamá, as propriedades limítrofes, ou seja, Monte, Bouça e talvez até mesmo Regalo, Montinho e Outeirinho. Ao mencionar-se a Bouça não se ignora que essa quinta não seja de formação muito antiga, mas apenas para que se tome em conta que os terrenos que agora a integram devem ter pertencido no passado à referida paróquia. Foram encontradas algumas colunas e capitéis que se julga terem pertencido à antiga igreja de S. Julião. Desconheço o destino dado a esses achados.

      Finalmente, a paróquia de S. Pedro de Ranulfi tinha a sua sede onde ainda hoje existe a velha igreja de S. Pedro, vulgarmente conhecida como igreja velha. O topónimo Ranulfi é de origem germânica, visto que representa o genitivo do nome pessoal de origem germânica Ranulfus. Assim, terá existido nas proximidades da igreja uma exploração rural pertencente a um indivíduo chamado Ranulfus - a villa Ranulfi -, certamente suevo ou visigodo ou seu descendente. O nome desse indivíduo terá servido durante muito tempo para designar o lugar onde existiu a referida exploração. Na região abundam muitas situações semelhantes. Este mesmo topónimo está na origem, por exemplo, do nome da freguesia de Ronfe. Aí Ranulfi ou Ranufi deu Rauffi, que depois evoluiu para Ronfe. Em Bairro esta evolução ou outra não se deu pela simples razão de que o topónimo Ranulfi foi substituído para designar a paróquia, entre os séculos XI e XIII, por Barrio, palavra que se julga ser de origem árabe, que evoluiu para Bairro. De facto, nas Inquirições de 1220 a paróquia já vem designada como «de Sancto Petro de Barrio de Novaes» e nas de 1258 por «Sancti Petri de Barrio». 

     Com o correr do tempo, com a excepção da última, algumas destas paróquias acabaram por ser extintas, embora não seja possível determinar com rigor as datas das respectivas extinções. S. Julião de Matamá, ou por ruína da igreja ou por outro motivo qualquer, foi extinta e integrada em Sanfins e em Bairro, talvez entre os séculos XI e XIII. Santo Estêvão de Natal fundiu-se com Sanfins, também entre os séculos XI e XIII, mas a igreja de Santo Estêvão passou a ser a sede da nova paróquia e Santo Estêvão o seu orago, embora a paróquia tenha continuado a ser designada por Sanfins de Riba de Ave. Daí o aparente paradoxo, que perdurou quase até aos nossos dias, de a paróquia de S. Fins ou Sanfins ter tido como orago Santo Estêvão, o que não deixará de intrigar os desconhecedores destes factos. Em alguns documentos antigos, designadamente nos registos paroquiais de baptismos, casamentos e óbitos, produzidos por pessoas que conheciam a história da paróquia, surge primeiro designada por Sanfins de Riba de Ave, mas, a partir dos anos 80 do século XVIII, é sempre chamada Santo Estêvão Fins de Riba de Ave, embora noutros documentos também se encontrem as designações S. Fins de Riba de Ave ou apenas S. Fins, como o povo sempre lhe chamou. Também há referências à paróquia sob a forma de S. Pedro Fins, o que resulta de alguma confusão em virtude de S. Pedro ter substituído, no século XVI, S. Fins como orago das paróquias de invocação deste santo. Muitas paróquias até aí chamadas Sanfins passaram a chamar-se S. Pedro Fins. No caso de Sanfins de Riba de Ave isso não se justificava porque o orago já não era S. Fins, há muito substituído por Santo Estêvão.

    A paróquia de Sanfins perdurou até ao século XIX e a sua fusão com a de Bairro só ocorreu depois da reforma administrativa empreendida pelos liberais a partir de 1835. Mas tudo indica que tenha sido um processo lento, que se arrastou por muitos anos. Nos Censos da população de 1890 ou 1930, por exemplo, a freguesia ainda era designada por Bairro e Sanfins, o que indica que não se tratou de uma simples integração de Sanfins em Bairro, mas de uma verdadeira fusão. Com o passar do tempo, certamente com o propósito de simplificar, em vez de ser designada por Bairro e Sanfins passou a designar-se apenas por Bairro.

    O Pe. Avelino de Jesus Costa, em «O Bispo D. Pedro e a Organização da Arquidiocese de Braga» diz que a paróquia de Sanfins foi incorporada eclesiasticamente em Bairro entre 1922 e 1926. Mas importa dizer que o regime das duas paróquias era diferente. Bairro era há muito uma abadia do padroado da Sé de Braga, enquanto Sanfins era um curado dependente do Mosteiro de Landim, que apresentava aqui o pároco . Em 4 de Julho de 1770, foi promulgada uma Breve do papa Clemente XIV que suprimiu, em Portugal, os mosteiros dos cónegos regulares de Santo Agostinho, a que o Mosteiro de Landim pertencia. Em 1772, o conjunto monástico foi adquirido por um landinense radicado no Brasil, Manuel Baptista Landim. A partir dessa altura, a paróquia de Sanfins passou para a dependência directa da diocese de Braga, a quem competia colocar aqui o pároco, em vez de ser o Mosteiro de Landim a fazê-lo. Nos 60 anos seguintes, terá colocado pelo menos três padres: Manuel José de Araújo, Francisco José Machado e Manuel Araújo Carvalho. Para além disso, pelos registos paroquiais pode verificar-se que, a partir de 1842, tinham deixado de fazer-se baptismos em Sanfins das crianças aí nascidas, o mesmo acontecendo com os casamentos, que passaram a fazer-se em Bairro. Os enterramentos ainda se faziam em Sanfins em 1865, mas a partir de 1860 nos registos dos óbitos aparece a indicação de que a paróquia de S. Estêvão Fins de Riba de Ave se acha anexa à de S. Pedro de Bairro. A partir de 1842 o pároco titular de Bairro e de Sanfins passou a ser o padre Dionísio José Barroso, ainda que o padre Manuel Araújo Carvalho tenha continuado a assinar alguns registos de nascimentos e casamentos, mas sempre com a indicação de que o fazia por mandado do pároco. Como este tinha a seu cargo as duas paróquias, interessava-lhe centralizar em Bairro, onde residia, toda a actividade paroquial das duas freguesias, o que contribuiu para o progressivo apagamento de Sanfins em favor de Bairro, num processo que se arrastou por muitos anos, pelo menos durante os 60 anos seguintes, provavelmente devido à oposição e resistência dos moradores de Sanfins, que não se terão conformado com a nova situação criada. Não quero contestar a veracidade da afirmação do Pe. Avelino de Jesus Costa atrás citada, de que a paróquia de Sanfins foi incorporada em Bairro entre 1922 e 1926, se isso significar que o acto formal de integração ocorreu naquele período. De direito pode ser assim. De facto, tal integração já tinha ocorrido há muito e, como se mostrou, não foi apenas resultante da reforma administrativa liberal. De resto, a paróquia de Santo Estêvão Fins de Riba de Ave deixou de ter livros de registo próprios para baptismos (1878), casamentos (1864) e óbitos (1865). A partir daquelas datas os baptismos, casamentos e óbitos dos residentes em Sanfins, que já eram feitos em Bairro há algum tempo, passaram a ser registados nos livros desta freguesia.

     Pelo que ficou exposto, salvo melhor opinião, parece evidente que foi a autoridade eclesiástica que conduziu todo este processo, limitando-se a autoridade civil a aceitar no final as alterações que foram feitas.

 
   Notas:

   (1) - Sobre a necrópole da quinta da Bouça pode consultar-se neste site um artigo com mais informação sobre este assunto.

   (2) - O Censual de Entre Lima e Ave terá sido elaborado entre 1085 e 1091.

   (3) - Só entre os rios Lima e Ave, segundo o Censual, a diocese de Braga tinha 573 paróquias e mosteiros. 

   (4) Esta paróquia pagava anualmente o jantar, também chamado parada ou procuração, que consistia em aposentar e alimentar o prelado ou o seu representante e respectiva comitiva na visita anual às paróquias. Era um encargo muito pesado, embora variável conforme as possibilidades das igrejas que a ele estavam obrigadas, visto que a comitiva era muito numerosa, fazendo-se acompanhar de carros, cavalos e cães.