Bairro, Sanfins e o rio

 

     As freguesias de Bairro e de Sanfins são banhadas pelo rio Ave e também são atravessadas por ribeiros. Por isso, desde há muito que os seus habitantes devem ter procurado utilizar os recursos desses cursos de água. O primeiro desses recursos que terá suscitado interesse foi certamente a fauna piscícola que havia outrora em grande quantidade e variedade. Pelos relatos dos documentos antigos sabemos que havia barbos, trutas, bogas, escalos, enguias e outros peixes que agora não se encontram no rio Ave, como a lampreia, o sável e até o salmão. Desde há muito que se construiram pesqueiras no leito do rio para facilitar a captura de peixe. Algumas delas são velhas de séculos, talvez mesmo milenares.

     Entre a Ponte da Pinguela e a Fábrica de Caniços, em Valtábuas, existe uma. Julgo tratar-se da pesqueira referida numa doação ao mosteiro de Santa Maria de Oliveira. Em 20 de Fevereiro de 1033 foi lavrado um documento pelo qual Marcos e Adosinda, sua esposa, doaram ao referido mosteiro imensos bens, entre os quais aqueles que receberam de seu pai Arias. Nesse documento é mencionada a «villa Paretes cum suas piscarias in Rivulo Ave». (1) Maria Rosário da Costa Bastos no seu livro «Santa Maria de Oliveira - Um Domínio Monástico do Entre-Douro-e-Minho em Finais da Idade Média» elaborou um mapa relativo ao património doado ao Mosteiro de Oliveira em 1033 e colocou a villa de Paredes na Carreira, freguesia onde existe um lugar com essa designação nas imediações da capela de Santo Amaro, por isso mesmo chamada Santo Amaro de Paredes, e a pesqueira da mesma propriedade muito perto do ponto de confluência do Ave com o Vizela, portanto em território hoje pertencente a Bairro e que na época devia integrar a paróquia de Santo Estêvão de Natal.

     No início da ocupação destas terras pelos seus primeiros habitantes a moagem de cereais, de raízes comestíveis e de bolota, que também foi utilizada na alimentação humana, terá sido feita pela força do homem, utilizando as chamadas mós de rebolo (2) e, mais tarde, pela força de animais, como nas atafonas, técnica trazida pelos romanos, uns e outros denominados moinhos a sangue.

 

                  

                             Mó de rebolo                                                                  Atafona

     Mais tarde os habitantes destas paragens, à semelhança do que aconteceu noutros lugares, terão procurado usar a força da corrente do rio para mover engenhos rudimentares de moagem de cereais, ou seja, em moinhos a água. Não se sabe quando foram construídos os primeiros moinhos desse tipo nos troços do rio correspondentes a Bairro ou a Sanfins. Os documentos mais antigos que se referem detalhadamente àquelas duas freguesias, as Inquirições de 1220 e 1258, não referem a existência de moinhos, embora daí não se possa concluir pela sua inexistência.

     Já nas «Memórias Paroquiais de 1758» menciona-se expressamente a existência de azenhas e moinhos. O pároco de Bairro, referindo-se ao rio Ave, afirma que «no distrito desta freguesia tem muitas fragas de pedra que o fazem arrebatado e o seria muito mais se não tivesse muitos açudes de moinhos e azenhas, que estas são duas e os moinhos são dezassete em seis levadas ou açudes, os quais só moem em tempo de Verão». Importa dizer que o lugar onde mais tarde foi construída a Fábrica de Fiação e Tecidos de Bairro se chamava antigamente Lugar das Azenhas, certamente aludindo à existência desses equipamentos. Em «O Minho Pitoresco», o Dr. José Augusto Vieira, referindo-se ao censo da população de 1879 da freguesia de Bairro e Sanfins, menciona entre outros o lugar das Azenhas. Quando desapareceram esses moinhos, o lugar deixou de ser designado dessa forma. Quanto à questão de os moinhos só serem utilizados no Verão isso tem uma explicação muito simples: os moleiros utilizavam os moinhos instalados em ribeiros ou riachos no Inverno, época do ano em que levavam água suficiente; quando a água começava a escassear nos ribeiros, isto é, no Verão, então vinham moer para o rio Ave. 

     O pároco de Sanfins, referindo-se ao rio Ave diz que «tem muitas propriedades de azenhas e moinhos» e acrescenta «e no distrito desta freguesia uma de azenhas com seus moinhos, que possui um lavrador chamado António Carneiro e outra de moinhos que possui a Quinta de Pereira (...). E tem algumas levadas com pesqueiras». 

     A partir dessa época o número de azenhas e moinhos deve ter aumentado em razão do aumento da população, pelo menos até ao início do século XX. A partir daí com a instalação de fábricas junto ao rio Ave alguns acabaram por ser demolidos para dar lugar a pequenas barragens. Numa foto antiga da ponte do caminho de ferro (3) é visível um moinho entre a ponte e a Fábrica de Caniços, o qual foi demolido no decurso de obras de ampliação da referida fábrica. Também se sabe - as pessoas mais velhas ainda se lembrarão - que havia uns moinhos a montante da outra Ponte de Caniços, mencionados por Arnaldo Gama em «O Segredo do Abade», que terão sido demolidos na altura em que foi construída a central termoeléctrica. Antes da sua demolição, em 1904, um desses moinhos foi objecto de uma intervenção no sentido de lhe colocar uma nova cobertura de colmo para resguardo de cereais. Descobri há pouco tempo um desenho que presumo destinar-se a acompanhar o pedido de licenciamento das obras. Os outros foram abandonados a partir da década de 60 do século passado, em virtude de a moagem começar a ser feita com recurso a outros meios.

 

     Sant'Ana Dionísio também nos deixou o seu testemunho sobre os moinhos de Caniços nestes termos: «junto ao rio, pequenas construções de grosseira pedra, velhos moinhos cuja idade ninguém sabia, adoradores do silêncio, confidentes do Ave, cujos segredos revelados com eles religiosamente morreram. Atravessando o penedio ribeirinho, dava-lhes acesso antigos e sinuosos carreiros, quase perdidos na mata, onde algures, uns com outros, se abraçavam». (4)

     No meu tempo de rapaz, os moleiros e os burros de que se socorriam na sua faina andavam em constante vaivém entre o rio e a casa dos fregueses. Quando seguiam em direcção ao rio, os burros iam carregados de cereal para moer; no regresso do rio, os burros vinham carregados de farinha. O pagamento dos serviços dos moleiros ainda se fazia por métodos antigos, raramente com recurso à moeda, em que o moleiro tinha direito à maquia, ou seja, do cereal entregue pelo freguês o moleiro tinha o direito a ficar com uma parte segundo costumes ancestrais, como recompensa pelo seu trabalho. Acontece que os moleiros, pelo menos alguns, tinham fama de prejudicarem os fregueses e tirarem uma maquia maior que o permitido.

     O rio Ave também teve um papel importante na fixação da indústria têxtil nas suas margens por ser uma actividade em que é necessária água em abundância, especialmente nas tinturarias. Mas a principal razão para instalar grandes fábricas no Vale do Ave, com trabalho em grande parte mecanizado,  resulta de se pretender explorar a energia hídrica, primeiro por sistemas hidráulicos, depois pela electricidade. A primeira fábrica da região concebida para trabalhar a energia eléctrica produzida na própria fábrica foi a da  Empresa Têxtil Eléctrica, que iniciou a sua actividade em 1905. Foi dotada de uma central própria - a central de Caniços - que produzia a energia necessária ao funcionamento da fábrica, embora dispusesse de uma central termoeléctrica de reserva. Actualmente a central eléctrica que foi da Empresa Têxtil Eléctrica pertence à EDP, que procedeu à sua remodelação em 2002.

     A empresa Sampaio, Ferreira & Cª. também construiu uma central eléctrica em Bairro, a central de Amieiro Galego, destinada a produzir a energia eléctrica necessária ao funcionamento da fábrica da referida empresa, bem como da fábrica da empresa Oliveira, Ferreira & Cª: Igualmente a Fábrica de Fiação e Tecidos de Bairro construiu a sua própria central - a central de Bairro -, que dispunha igualmente de uma central termoeléctrica de reserva.

     Para além destas três centrais de serviço particular instaladas no rio Ave, em Bairro, na freguesia também esteve em funcionamento, durante mais de 30 anos, uma central termoeléctrica de serviço público - a central de Caniços -, que entrou em actividade em 5 de Janeiro de 1929. Pertencia nessa altura à Companhia Hidroeléctrica do Varosa. Com a fusão e integração dessa companhia na CHENOP em 1943, a central de Caniços passou a trabalhar em paralelo com as centrais do Chocalho, Guilhofrei, Ermal e Ponte da Esperança. Desde 1929 até ao início dos anos 60 do século passado, altura em que foi desactivada, era frequente chegarem comboios carregados de carvão para alimentar as caldeiras desta central. Quem passava junto à estação de Caniços podia observar o duro trabalho de descarga dos vagões, o que era feito manualmente, visto não se dispor de dispositivos mecânicos para efectuar a essa tarefa. 

Notas:

(1) - Portugaliae Monumenta Historica, Diplomata et Chartae, nº. CCLXXVIII.

(2) - Como mostra a figura acima, consistia na utilização de duas pedras: a inferior, fixa, plana, relativamente larga e ligeiramente inclinada para uma dos lados (o pouso); a outra, móvel, do tamanho que uma pessoa a pudesse manobrar (a mó). Pela acção da pessoa que segurava a mó e lhe imprimia um movimento de vaivém, esmagava o que era colocado no pouso. Trabalhava-se geralmente de joelhos, que apesar de ser uma posição incómoda, permitia usar o peso do corpo para favorecer o movimento. A farinha tendia a cair para o lado da inclinação. Nesta região os arqueólogos têm encontrado muitas mós deste tipo em castros e noutros lugares.

(3) - Ver galeria de fotos.

(4) - Sant'Ana Dionísio, em «Velho Minho».