Caniços - ascensão e queda

     Caniços e outros lugares das freguesias de Bairro e de Sanfins, situados entre a estrada real e o rio Ave, eram no passado uma ampla área florestal não habitada. Mas, desde tempos imemoriais, havia muitos moinhos e açudes junto ao rio, onde se chegava por antigos e sinuosos carreiros. O transporte de cereais e da farinha neles obtida era feito com a ajuda de burros, que carregavam ao lombo os pesados alforjes (1), porque não era possível chegar lá usando carroças. Todavia, no Inverno, os moleiros moíam os cereais preferencialmente em moinhos localizados junto aos ribeiros, onde geralmente tinham também as suas habitações. Os moinhos que ficavam nas margens do rio eram utilizados apenas no Verão, quando os ribeiros deixavam de trazer água suficiente para os por em movimento. (2)
     Nesses lugares, para além da moagem de cereais, também se praticava a pesca, visto que o rio era abundante em várias espécies piscícolas como o barbo, a truta, a boga, o escalo, a enguia e até a lampreia, o sável e o salmão. Tão abundantes recursos em tempo de tanta penúria não podiam ser desperdiçados pelo homem nesses tempos recuados.
     Na freguesia de Rebordões, nas inquirições de 1220 e 1258, de D. Afonso II e D. Afonso III, respectivamente, são mencionadas três pesqueiras, uma das quais chamada Canizo. É certamente daí que vem o nome do lugar de Caniços. Essa pesqueira ficava situada entre Rebordões e Sanfins de Riba de Ave, no limite desta freguesia com a de Sequeirô. 
     Provavelmente o nome do lugar virá do tipo de vegetação existente no local quando começou a ser assim chamado ou, uma vez que se tratava de uma pesqueira, também pode resultar do nome de um instrumento de pesca usado nessa remota época, visto que a palavra caniço comporta, entre outros, esses significados: o de designar uma planta que vive nas margens dos rios e outros sítios húmidos, mas também tem o sentido de cesto de verga ou ripas entrançadas, usado para apanhar peixe. 
     Passados mais de 500 anos, no registo de dois óbitos por afogamento na freguesia de Sanfins de Riba de Ave, em 1759, verifica-se que Caniços continuava confinado a um recôndito lugarejo no limite da freguesia, onde havia a tal pesqueira ou açude e alguns moinhos em ambas as margens do rio Ave. Nesse registo diz-se que uma mulher chamada Custódia, solteira, e a filha de 6 para 7 anos, naturais de Salvador de Monte Córdova, morreram afogadas quando atravessavam o rio por uns penedos no dito lugar de Caniços (3), no limite da freguesia. 

     Quem consultar os livros de registos paroquiais da freguesia de Sanfins de Riba de Ave encontra muito poucas referências a Caniços antes do século XIX, pela simples razão de que o lugar era de reduzida dimensão e não era habitado e, por isso, não havia nascimentos ou casamentos no lugar para registar. É apenas referido em alguns óbitos mas não de moradores, que os não havia, como no caso acima mencionado.
     Alguns anos mais tarde, em 1780, foi inaugurada uma nova ponte de pedra para substituir uma antiga ponte de madeira muito próxima, que o pároco de Sanfins, em 1758, dizia ficar situada no lugar dos Saltos (4). A nova ponte que também ficava no mesmo lugar, não muito distante da anterior, não tomou esse nome, mas chamou-se de Caniços, lugar que ficava a alguma distância para jusante, como ficou atrás explicado.
     Apesar disso, o lugar a que hoje chamamos Caniços, em finais do século XVIII e durante quase todo o século XIX, é referido nos registos paroquiais como lugar da Ponte, algumas (poucas) vezes também chamado lugar da Ponte de Caniços. No censo da população de Bairro e Sanfins do ano de 1879, citado pelo dr. José Augusto Vieira em «O Minho Pitoresco», o nome do lugar que depois se chamou Caniços era ainda mencionado como lugar da Ponte.
     Em finais do século XIX, mais precisamente em 31 de Dezembro de 1883, teve lugar a viagem inaugural da circulação de comboios na linha de caminho de ferro de Guimarães. A partir do dia seguinte, 1 de Janeiro de 1884, os comboios começaram a circular regularmente, mas de início não paravam em Bairro, que ficava entre as estações de Santo Tirso e Negrelos. Pouco tempo depois passou a dispor de um apeadeiro a que deram o nome de Caniços. Não sei a data em que isso aconteceu, mas sei que servia as populações de Bairro e de várias freguesias vizinhas como Rebordões, Sequeirô, Carreira, S. Simão de Novais, Delães, S. Mateus de Oliveira, Riba de Ave e muitas outras, para além de servir as inúmeras empresas que começaram a instalar-se nas proximidades. Por isso, o movimento de passageiros e de mercadorias no apeadeiro de Caniços a breve trecho tornou-se interessante para a Companhia do Caminho de Ferro de Guimarães e justificou a construção de uma estação, embora não tenha conseguido apurar o ano em que isso ocorreu. Em 1887 já havia em Caniços uma estação, visto que, nesse ano, no livro de registos de baptismos da freguesia de Bairro, há um assento em que é mencionado o nome do chefe da estação local, José Augusto de Andrade, natural de Santo Tirso. Em 1896 o chefe da estação já era Joaquim de Sousa Neves e , em 1899, era José Maria de Freitas  Guimarães, estes dois últimos naturais de Guimarães.
     Para a história do lugar foi decisivo que a ponte ferroviária assim como o apeadeiro e depois a estação tenham tomado o nome de Caniços. O lugarejo insignificante que ficava no limite da freguesia estendia-se assim para nascente e chegava à confluência do Vizela com o Ave, mas ainda haveria de crescer mais. Em 1905 foi inaugurada a fábrica da Empresa Têxtil Eléctrica, vulgarmente conhecida como fábrica de Caniços, pelo que se estendeu quase até a Val’Tábuas, como era conhecido um lugar entre a dita fábrica e a Pinguela de Romão. Nesse lugar há uma razoável porção de terreno plano em ambas as margens do rio, pelo que, no Inverno, na altura em que há cheias, o rio transborda para essas áreas planas formando um grande lago.
     Devido ao facto do lugar ser servido primeiro por um apeadeiro e depois por uma estação da linha de Guimarães, obviamente que isso favoreceu a instalação de algumas importantes empresas do sector têxtil e da produção de energia eléctrica nas proximidades. A partir do início do século XX foram criados no lugar centenas de postos de trabalho, o que levou à construção de muitas habitações e de um bairro para os operários da Empresa Têxtil Eléctrica, o que propiciou a fixação de muitas das pessoas que conseguiram emprego nas empresas próximas. O comércio também floresceu. Havia mercearias, tascos, cafés e casas que serviam refeições e proporcionavam dormida, vendedores de fruta, talho, barbeiro, sapateiro, táxi e até chegaram a realizar-se espectáculos de teatro e de variedades. Em poucos anos um lugar que era «selvático e ermo» no dizer de Sant’ana Dionísio, transfigurou-se completamente e passou a ser um dos mais importantes da freguesia de Bairro, quer no que respeita ao seu efectivo populacional, quer relativamente à importância económica das unidades de produção instaladas. (4) Quem passava por Caniços encontrava sempre gente em movimento a deslocar-se para estação ou para trabalho ou em sentido inverso.
     Pelo lugar passava a antiga estrada real que, como outras, tinha sido concebida para nela transitarem carros de bois e carroças. Por isso, começou a não satisfazer plenamente as necessidades das populações e das empresas que se instalaram em Bairro, Delães e Riba de Ave. Era estreita e muito inclinada em alguns pontos, o que dificultava o trânsito de viaturas automóveis de passageiros ou de carga, que começaram a circular por aqui a partir dos anos 30 do século passado. Impunha-se a realização de obras para a melhorar ou fazer uma nova estrada. A preferência dos industriais, ao que tudo indica, ia para a segunda alternativa, visto que algumas das fábricas entretanto instaladas ficavam afastadas da antiga estrada real. O que pretendiam é que a nova estrada passasse junto dessas fábricas ligando Riba de Ave à estação de Caniços, ligação que era muito importante já que por essa estação lhes chegavam matérias primas, máquinas, material para conservação e reparação de equipamentos, técnicos… e por ela faziam seguir os produtos fabricados. Conseguiram que o governo presidido pelo general Domingos de Oliveira tomasse a decisão de mandar construir essa estrada, o que deve ter ocorrido entre 21 de Janeiro de 1930 e 5 de Julho de 1932, visto que o referido general presidiu ao governo durante esse período. A estrada terminava na estação de Caniços, não ligando à ponte. Quem pretendia passar na ponte tinha que utilizar a estrada velha que comunicava com a nova pela parte inicial da rua agora chamada de Zeca Afonso. Alguns anos mais tarde é que se completou a estrada até à ponte, o que implicou a deslocação da passagem de nível, ficando mais próxima da estação que antes. A casa da guarda da passagem de nível, que era minúscula, essa manteve-se no mesmo local, um pouco afastada da nova passagem de nível.
     Durante quase todo o século XX, até à década de 80, Caniços viveu o seu período áureo, mas a partir daí a indústria têxtil entrou em crise profunda de que as empresas locais nunca mais recuperaram, acabando por entrar numa letargia que culminou com o seu encerramento uns anos mais tarde. O comércio também se ressentiu, quase desapareceu. Antes, já a central térmica de Caniços deixara de produzir energia eléctrica, embora fossem mantidos alguns serviços administrativos e outros em Caniços, que mais tarde foram transferidos juntamente com o pessoal que os prestava para outras localidades.  Centenas de empregos foram perdidos. Os jovens, sem perspectiva de futuro no lugar, procuraram outras paragens. A população começou a diminuir, ficando quase só reduzida a velhos. Caniços é agora apenas uma sombra daquilo que foi. O lugar fora atractivo para a indústria por ficar situado junto de um curso de água, por dispor de transporte para as matérias primas e produtos fabricados, por os terrenos serem baratos, por haver mão de obra abundante, barata e dócil… Alguns destes factores não têm hoje a mesma importância. O principal é que a passagem de uma linha de caminho de ferro já não é decisiva para atrair empresas industriais, porque o transporte de matérias primas e de produtos acabados já não se faz pela ferrovia, mas pela rodovia. Quer dizer: a crise no sector têxtil fez sucumbir as empresas locais e não é de esperar que os factores que impulsionaram a ascensão de Caniços, que perderam a sua importância, permitam a atracção de novas empresas que substituam as que encerraram.

     Em 2004, a linha de Guimarães, depois de algum tempo encerrada, foi reaberta após obras de modernização, que incluiram a mudança de bitola, a electificação da via férrea, a remodelação das estações e a supressão de passagens de nível, como aconteceu em Caniços. Mas isso não veio mudar o curso dos acontecimentos no que se refere ao declínio  de Caniços, que parece seguir uma marcha inexorável sem retrocesso: uma viagem só de ida e sem volta. (6)

Notas: 
(1) -  Alforje é um saco com dois compatimentos que dobra ao meio e se coloca sobre a cavalgadura, permitindo uma melhor distribuição e equilibrio da carga. Também pode ser colocado ao ombro de um carregador.
(2) - Em Bairro e em Sanfins havia muitas levadas e moinhos. Em 1758, nas «Memórias Paroquiais» o pároco de Bairro afirma que «em o distrito desta freguesia tem muitas fragas de pedra que o fazem arrebatado e o seria muito mais se não tivesse muitos açudes de moinhos e azenhas, que estas são duas e os moinhos são dezassete em seis levadas ou açudes, os quais só moem em o tempo de Verão». Estas seis levadas ficavam num lugar que antigamente se chamava das Azenhas, entre a Pinguela de Romão e Vila Verde.     
     O pároco de Sanfins por sua vez de declara: «Tem (o rio Ave) muitas propriedades de azenhas e moinhos. E no distrito desta freguesia uma de azenhas com seus moinhos, que possui um lavrador chamado António Carneiro e outra de moinhos que possui a quinta de Pereira». «E tem algumas levadas com pesqueiras».
     Também havia antigamente em Sanfins um lugar junto ao rio Ave chamado das Azenhas de Baixo para o distinguir do lugar da Azenha, que ficava perto da igreja.
     Pelo relato dos dois padres percebe-se que no rio Ave desde Vila Verde a Caniços havia um grande número de azenhas e moinhos em pelo menos dez levadas ou açudes.
 
(3) - Devido à existência de três barragens entre Vila Verde e Caniços e mais uma outra a jusante, o rio Ave apresenta hoje em todo o seu percurso em Bairro uma configuração muito diferente da que tinha antigamente, em  que era muito mais arrebatado, como dizia o pároco de Bairro em 1758. Hoje, o nível das águas é muito mais elevado que outrora e tem menos corrente.
 
(4) - Na freguesia de Sequeirô há um lugar junto ao rio Ave chamado Monte dos Saltos, que não fica muito longe. Na designação do lugar a palavra monte não significa uma elevação de terreno, parece antes significar uma área florestal, que se estendia até Sanfins de Riba de Ave. Talvez seja esta a explicação para o facto de o lugar dessa ponte ser chamado dos Saltos.
 
(5) - Para além da Empresa Têxtil Eléctrica, fundada em 1905, também se instalou em Caniços a fábrica têxtil de Mira Ave e, em 1929, uma cental térmica, que utilizava como combustível o carvão, que vinha em vagões das minas de S. Pedro da Cova e de outras proveniências até Caniços.
 
(6) - Na linha de Guimarães foram construídas várias novas estações para substituir as antigas. Estas novas estações dispõem de  bar, salas de espera, instalações sanitárias... mas  não têm pessoal e estão encerradas. Funcionam apenas como simples apeadeiros em que as pessoas apenas têm acesso às gares, não se percebendo a razão por que foram construídas.