Os antepassados de D. Nuno Álvares Pereira

     Os genealogistas dizem que D. Nuno Álvares Pereira era filho do prior da Ordem do Hospital, D. Álvaro Gonçalves de Pereira, neto do bispo de Braga, D. Gonçalo Gonçalves Pereira, bisneto de D. Gonçalo Pires de Pereira, o Liberal, trineto de D. Pedro Rodrigues de Pereira, tetraneto de D. Rui Gonçalves de Pereira e quinto neto de D. Gonçalo Rodrigues de Palmeira, ou seja, entre este e D. Nuno seriam 6 gerações e um período de tempo de cerca de 270 anos, visto que D. Gonçalo Rodrigues de Palmeira terá nascido cerca de 1090 ou antes e de D. Nuno sabe-se que nasceu em 1360. Tudo isto é muito duvidoso. 

     Os livros de linhagens dizem que D. Gonçalo Rodrigues de Palmeira (1) era galego e que veio da Galiza para Portugal durante o reinado de D. Sancho I. Mas isso não é compatível com o facto do seu nome aparecer em doações e outros documentos da chancelaria do tempo de D. Teresa, sendo seu mordomo-mor em 1114, e de D. Afonso Henriques. Isso significa que terá nascido à volta de 1090 ou antes. Também se diz que seu filho, D. Rui Gonçalves de Pereira (2), terá participado na batalha de Navas de Tolosa. Pinho Leal, em «Portugal Antigo e Moderno», diz que D. Rui Gonçalves Pereira foi um dos mais intrépidos guerreiros do seu tempo, que nasceu em 1192, e foi um dos capitães mandados por D. Afonso II com um exército em socorro de Afonso VIII de Castela contra o poderio de Mahomet IV, que estava a conquistar as Espanhas». E acrescenta: «Tais actos de bravura praticados na famosíssima batalha e gloriosa vitória de Navas de Tolosa, em 1212, causou espanto a todo o exército cristão, muito mais porque D. Rui não tinha então mais de 20 anos». Além disso, sabe-se que D.Gonçalo Rodrigues de Palmeira faleceu provavelmente antes de 1177, visto que nesse ano os seus filhos ratificaram a sua doação do couto de Palmeira ao Mosteiro de Landim. Por isso, pode alguém com o nome de D. Rui Gonçalves de Pereira ter participado na batalha de Navas de Tolosa, o que não pode é ser filho de Gonçalo Rodrigues de Palmeira, não nasceu em 1192 e, provavelmente, em 1212 até já tinha morrido.

     Como D. Gonçalo Rodrigues de Palmeira nasceu cerca de 1090 e D. Nuno Álvares Pereira nasceu em 1360, entre um e outro são 6 gerações e um período de tempo de cerca de 270 anos. Isto significa que D. Nuno e os seus antepassados até D. Rui Gonçalves Pereira quando nasceram os pais tinham, em média, 45 anos de idade. Este número é demasiadamente grande e torna irremediavelmente pouco credível esta genealogia, tanto mais que são primogénitos a maior parte daqueles que são apontados como antepassados de D. Nuno. Se em vez de 6 fossem 8 ou 9 gerações, já se obteriam valores aceitáveis, próximo dos 34 anos no primeiro caso e 30 no segundo. Claro que isto deixa muitas dúvidas sobre a veracidade desta genealogia.

     Há ainda outros pormenores a que importa dar atenção: consultando as Inquirições de 1220 e 1258 da freguesia de Sanfins de Riba de Ave, onde a família Pereira teve o seu solar, não há nenhuma referência a qualquer dos antepassados supracitados de D. Nuno, mas um dos inquiridos, que respondia pela herdade de Pereira, tem o nome de Gonçalo Saamiriz de Pereira, nome que nunca vem referido nos livros de linhagens. Saamiriz aparenta ser um patronímico, pelo que significa filho de Saamir ou de Samir. Quer dizer, esse Gonçalo Saamariz seria filho de alguém chamado Saamir, nome nunca visto entre a nobreza peninsular descendente dos godos, mas que é comum entre árabes e mouros. Seriam esse Saamir e o filho Gonçalo Saamiriz de Pereira de origem moura? Haverá algum parentesco entre Saamir e Gonçalo Saamiriz com D. Gonçalo Rodrigues de Palmeira ou D. Rui Gonçalves Pereira, que antes tiveram a posse daquela herdade? Será este Gonçalo Saamiriz de Pereira  um antepassado de D. Nuno? Eu não sei as respostas, deixo apenas as dúvidas para que responda quem souber. Uma coisa é certa: na genealogia de D. Nuno parece haver omissões e erros, parece haver factos que se quis ocultar. Certamente nunca se conseguirá saber toda a verdade.

     Há outro pormenor: há quem sustente que D. Rui Gonçalves de Pereira deixou descendência do seu primeiro matrimónio com Inês Sanches, a tal que «fez maldade» com um frade do Bouro e que, por causa disso, foi queimada no castelo de Lanhoso. Um dos filhos seria Gonçalo Rodrigues (3). Será que D. Nuno é descendente de Inês Sanches e deste Gonçalo Rodrigues ou de alguma irmã deste? Será que se quis omitir este facto devido ao adultério de Inês Sanches?

     Sabe-se ainda que D. Pedro Rodrigues de Pereira (4) foi tenente de D. Afonso Henriques em Trancoso e Viseu entre 1180 e 1183. Isto quer dizer que terá nascido à volta de 1160 ou antes. Por outro lado, também se sabe que o bisavô de D. Nuno, D. Gonçalo Pires de Pereira (5), terá nascido à volta de 1250, ou talvez um pouco antes, ou seja, aquele que os livros de linhagens apontam como seu pai teria na altura do seu nascimento cerca de 90 anos de idade! Este é, assim, o elo mais fraco na cadeia genealógica atrás referida. Pode o seu pai até ser alguém com o nome de Pedro Rodrigues de Pereira (6), mas que não pode ser filho de D. Rui Gonçalves de Pereira e neto de D. Gonçalo Rodrigues de Palmeira.


 

     Os antepassados de Nuno Álvares Pereira, que viveram na quinta de Pereira da extinta freguesia de Sanfins de Riba de Ave, apresentam, portanto, uma genealogia envolta em muito mistério. Além disso, os dados biográficos de alguns deles referidos nos livros de linhagens são manifestamente falsos. Como já se exemplificou, desses livros colhe-se informações erradas, anacrónicas e, por vezes, contraditórias. Há muitos factos imputados a D. Gonçalo Rodrigues de Palmeira que ocorreram manifestamente depois da sua morte. O mesmo acontece com o seu filho D. Rui Gonçalves de Pereira e com seu neto D. Pedro Rodrigues de Pereira. Provavelmente haveria outras pessoas com os mesmos nomes, porventura da mesma família, que seriam os verdadeiros autores desses actos, que erradamente lhes são atribuídos.

     O chamado Livro de Linhagens do conde de Barcelos D. Pedro, filho bastardo de D. Dinis, terá sido escrito, segundo José Mattoso, entre 1340 e 1344. Sabe-se que D. Vasco Gonçalves Pereira (7) e  seu meio-irmão Rui Gonçalves de Pereira (8), respectivamente, irmão e meio-irmão do arcebispo de Braga D. Gonçalo Gonçalves Pereira (9), todos filhos de D. Gonçalo Pires de Pereira, o Liberal, foram figuras muito próximas do conde D. Pedro, de quem foram vassalos, e que poderão ter-lhe fornecido informações sobre as suas tradições familiares, que abundam naquele Livro de Linhagens. Depois de escrita a primeira versão do livro, foram feitas modificações e atualizações  de acordo com o interesse das famílias que as patrocinaram, as chamadas refundições. Sabe-se que as houve entre 1360-1365 e entre 1380-1383, provavelmente com o patrocínio do Prior da Ordem Militar do Hospital, frei D. Álvaro Gonçalves de Pereira (10), pai do futuro Condestável. Em tais refundições fez-se uma atualização das genealogias de algumas famílias até aos referidos anos e foram desenvolvidas as narrativas referentes aos Pereiras, designadamente a biografia de D. Álvaro Gonçalves Pereira e o relato da sua participação heróica na batalha do Salado. 

     Quem elabora genealogias, muitas vezes procura trazer para a sua árvore genealógica um antepassado ilustre e esquecer um antepassado infame. Traz para o circuito familiar um parente distante que se notabilizou pelo heroísmo, e com a mesma facilidade esquece o traidor parentalmente próximo, o marido traído que não vingou devidamente a honra, a mulher adúltera que desonrou a sua linhagem ou o antepassado de origem moura… Algumas destas coisas podem ter acontecido na linhagem dos Pereiras.

     Manuel de Souza da Silva (1649-1713), em «Nobiliário das Gerações de Entre-Douro-e-Minho», livro mais tarde publicado com anotações de Camilo Castelo Branco, afirma: «Na quinta de Pereira morou D. Rui Gonçalves de Pereira, seu filho D. Pedro Rodrigues de Pereira, seu neto D. Gonçalo Pereira e seu bisneto D. Vasco Gonçalves Pereira; e a possuíram os seus descendentes os senhores de Cabeceiras de Basto, por falta dos quais passou aos Almadas, que ao presente a logram» (11). Esta afirmação corrobora a genealogia geralmente aceite e acentua que o ramo que conduz até D. Nuno era originário da quinta de Pereira da antiga freguesia de Sanfins de Riba de Ave, agora extinta e integrada na freguesia de Bairro.  Muitos outros autores dizem o mesmo, embora alguns se refiram àquela freguesia designando-a por S. Pedro  Fins (12), como é o caso de António Peixoto de Queirós Vasconcelos (13) ou de Felgueiras Gaio (14). Têm, contudo, o mérito de identificarem os moradores dessa quinta com o ramo que leva a D. Nuno Álvares Pereira, mas não deve tirar-se daqui que D. Pedro Rodrigues de Pereira, filho de D. Rui Gonçalves de Pereira e neto de D. Gonçalo Rodrigues de Palmeira teve a posse dessa quinta. É que em 1220 ele ainda era vivo e a posse da referida quinta era de Gonçalo Saamiriz. No mesmo ano, ele era possuidor de uma outra quinta de Pereira, mas em Esmeriz, como se pode ver pelas inquirições desta freguesia.             

     Então, o que se pode afirmar com toda a segurança é que a partir de Gonçalo Pires de Pereira, pai do arcebispo de Braga Gonçalo Gonçalves de Pereira, que casou com Urraca Vasques Pimentel (15),  não haverá erros significativos. Não há dúvidas que seu filho, o bispo Gonçalo Gonçalves Pereira, é o pai do Prior da Ordem do Hospital, D. Álvaro Gonçalves Pereira, que sucedeu naquele importante cargo a um seu tio-avô. No Nobiliário do Conde D. Pedro sobre este bispo de Braga diz-se que «sendo escolar mui novo, sem ordens, estando no estudo em Salamanca, filhou aí uma dona que se chamava Dona Teresa Pires Vilarinha, filha de Pero Gonçalves Vilarinho, e fez em ela D. Álvaro Gonçalves Pereira». Não deve ser verdade que ainda não tivesse ordens, visto que foi deão de Tui em 1296 e o filho nasceu muito depois disso, talvez entre 1310 e 1320. D. Álvaro Gonçalves Pereira «foi metido na Ordem do Hospital muito moço; este fez-se aí ensinado e conversador com os cavaleiros da Ordem, que o elegeram depois da morte do Prior D. Estêvão Vasques Pimentel (16) sendo de idade de 18 anos». Teve 32 filhos de várias mulheres e quando morreu eram vivos 18, sendo um deles D. Nuno Álvares Pereira, que se diz ter nascido a 24 de Junho de 1360.

     O pai desse bispo de Braga deve ter nascido à volta de 1250, ou seja, fica contada a história de 110 anos desta família desde o nascimento do bisavô até D. Nuno, só fica a faltar o período inicial que vai de cerca de 1090 até 1250, 160 anos, o que é manifestamente pouco provável cobrir com apenas mais 3 gerações, como propõem os livros de linhagens. 

     Então, o que está errado? Para além do que já foi atrás indicado, está certamente errado que D. Pedro Rodrigues de Pereira, neto de D. Gonçalo Rodrigues de Palmeira, o que foi tenente de Trancoso e Viseu entre 1080 e 1083, possa ser o pai de D. Gonçalo Pires de Pereira, o Liberal, visto que o primeiro deve ter nascido à volta de 1060 ou antes e o segundo parece ter nascido à volta de 1250, ou seja, cerca de 90 anos depois. Provavelmente haveria duas pessoas com o mesmo nome, que os Livros de Linhagens tratam como se fosse uma só. 

     É possível que um segundo Pedro Rodrigues seja filho de um outro Rui Gonçalves e neto de um outro Gonçalo, não o de Palmeira, talvez de  Gonçalo Saamiriz de Pereira, que as inquirições de 1220 e 1258 da freguesia de Sanfins de Riba de Ave apontam como tendo a posse da quinta de Pereira.

     Chegados até aqui, podemos agora perguntar: serão D. Gonçalo Rodrigues de Palmeira e seu filho, D. Rui Gonçalves de Pereira, antepassados de D. Nuno Álvares Pereira? Podem ser, mas não quinto avô e tetravô como dizem os genealogistas, talvez oitavo e sétimo avô, respectivamente. Seria assim se Gonçalo Saamiriz fosse descendente deles. Sabemos que este teve a posse da quinta de Pereira de Sanfins de Riba de Ave entre 1220 e 1258 e que antes a mesma quinta tinha pertencido a D. Gonçalo Rodrigues de Palmeira e depois a D. Rui Gonçalves de Pereira, ambos já falecidos em 1220 e, por isso, não admira que possa ser seu descendente e herdeiro. Ele deveria ser filho de alguém chamado Saamir. Se sua mãe fosse uma filha de D. Rui Gonçalves de Pereira, talvez do seu primeiro casamento com Inês Sanches, então D. Nuno seria descendente deles. Por outro lado, D. Pedro Rodrigues de Pereira, o que foi tenente de Trancoso e Viseu, que era em 1220 possuidor da quinta de Pereira, em Esmeriz, não pode ser o pai de D. Gonçalo Pereira, o Liberal, nem deve ser antepassado directo de D. Nuno.

     Se for assim, a cadeia genealógica que a partir de Gonçalo Rodrigues de Palmeira leva até D. Nuno Álvares Pereira, seria: Gonçalo Rodrigues de Palmeira > Rui Gonçalves de Pereira > Saamir > Gonçalo Saamiriz de Pereira > Rui Gonçalves de Pereira > Pedro Rodrigues de Pereira > Gonçalo Pires de Pereira > Gonçalo Gonçalves de Pereira > Álvaro Gonçalves de Pereira > Nuno Álvares Pereira. 

Notas:

(1) - D. Gonçalo Rodrigues de Palmeira, filho de Rodrigo Froilaz de Trastâmara, neto de Fruela Bermudes de Traba e bisneto de Bermudo Froilaz de Trastâmara...