O Lourenço das Galinhas

     Nasceu em Delães, no lugar do Loureiro, no dia 2 de Dezembro de 1849. Era filho natural de Maria Joaquina da Cunha e neto de Maria da Cunha. Foi seu padrinho António Marques, residente na freguesia de Bairro. Exerceu o ofício de pedreiro. Era muito conhecido em Delães e nas freguesias vizinhas pelo mal que causava. Chamavam-lhe Lourenço das Galinhas por se ter destacado no assalto aos galinheiros das redondezas desde rapaz novo, mas o seu verdadeiro nome era António Lourenço da Cunha. 

     Culpava a mãe pela má inclinação que tinha. Contava que uma vez, quando ainda era muito pequeno e de tenra idade, furtou a uma vizinha uma agulha e que a levou à mãe, que em vez de reprovar o seu acto e o repreender, lhe disse: 

     - Volta lá e vê se trazes também o dedal. 

     Terá sido assim que se iniciou na vida de ladrão. Entrara por má porta, mas culpava a mãe de ser quem lha escancarou. Começou por roubar pequenas coisas nas vendas, nas feiras e romarias, mas ao longo da vida foi subindo a parada no que toca ao tipo de roubos que consumava. 

     Apesar disso, procurava dar-se bem com as pessoas da vizinhança, especialmente com os lavradores, que também queriam ter uma boa relação com ele para não serem objecto das suas nefastas acções. 

     Dele contam-se muitas histórias. Eu vou contar algumas que elucidam quem era este Lourenço. 

     Uma vez um homem já entrado na idade saiu de casa muito cedo, ainda noite, para a feira de Guimarães. Ia a cavalo e ao passar num lugar despovoado foi mandado parar por um salteador que lhe saiu ao caminho. Mas o homem reconheceu-o e disse: 

     - Que diabo é isto, Lourenço? 

     Ao que o outro respondeu: 

     - Desculpe, senhor Andrade. Quando o mandei parar ainda não o tinha reconhecido. Pode seguir o seu caminho. Até lhe vou dar uma navalha. Os meus homens estão aí mais abaixo. Se lhe aparecerem, mostre-lhe esta navalha, que eles bem conhecem, e deixá-lo-ão seguir sem incómodo. Sabe que o considero um amigo. Queira desculpar-me. 

     O homem que o Lourenço mandou parar era Domingos Rodrigues de Andrade, meu trisavô. 

     Muitos anos depois, numa tarde de Inverno, uma mulher foi a Delães à farmácia do Veloso para aviar uma receita médica para algum familiar que estava doente. Naquele tempo aviar uma receita na farmácia era bastante demorado, visto que os medicamentos não estavam embalados como estão agora. Os diversos ingredientes tinham que ser cuidadosamente pesados, depois tinham de ser misturados, enfim era um processo complicado e lento. Começava a escurecer e a mulher mostrou preocupação por ter que voltar a casa já de noite. Um homem que estava lá sentado a um canto, que a mulher nem conhecia, prontificou-se de imediato para a acompanhar até casa, quando a receita estivesse aviada. 

     No regresso a casa, a mulher entabulou com o acompanhante uma conversa de circunstância, disse-lhe que era a mulher de um mestre pedreiro de Bairro, o José Lino, e a certa altura confessou: 


     - Eu tenho muito medo de andar de noite. Tenho medo que me apareçam ladrões e que me roubem ou me façam mal. Anda por aí o Lourenço. Tenho um medo desse malandro que me pelo. 


     O homem ouvia e sorria. Depois a conversa tomou outro rumo. Quando chegaram à casa onde a mulher morava, o homem disse-lhe: 

     - Dê cumprimentos ao seu marido. Conheço-o muito bem e considero-o um amigo. Diga ao senhor José Lino, que veio muito bem acompanhada desde Delães pelo Lourenço. 

     A mulher, Engrácia Ferreira da Silva, incrédula com o que lhe estava a acontecer, agradeceu. 

     Este facto deve ter acontecido já depois de 1903, uma vez que foi nesse ano que José António Silva, que era conhecido por José Lino, casou com Engrácia. Por essa altura o Lourenço já tinha mais de 50 anos. 

     De uma outra vez o próprio Lourenço contava que em certa ocasião estava sem um tostão no bolso. Era noite, já bastante tarde. Saiu de Delães vagarosamente em direcção a Santo Tirso à procura de alguma coisa, de uma qualquer luz que iluminasse o seu caminho. Depois seguiu na estrada do Porto. Não passava ninguém. Mais adiante, na Reguenga, começou a ver ao longe uma luzinha que se deslocava de um lado para o outro. 

     A Reguenga era terra de galinheiras, mulheres que criavam galinhas para vender. Deslocavam-se a pé para as feiras com pesados cestos à cabeça carregados de galinhas e frangos. Vi-as passar para a Sant’Ana tantas vezes. O percurso entre a Reguenga e a Sant’Ana é longo, mais de 18 Km. Era um trabalho duro. Os rapazes pouco sensíveis ao esforço de quem trabalha arduamente e sofre para levar a vida, insolentes, dirigiam-lhes palavras pouco simpáticas e perguntavam malcriadamente: 

     - Ó galinheira, a como está o pito na feira? 

     Não ficavam sem resposta. Elas davam-na redobrando o tom. 

     O Lourenço ao ver uma luz a cirandar de um lado para o outro, uma candeia que alguém levava na mão, pensou com os seus botões: «aquilo é uma galinheira a preparar as coisas para sair para a feira». Aproximou-se cautelosamente e trepou para uma laranjeira que havia perto da casa, donde podia observar todos os movimentos da mulher. Quando ficou pronta, chamou por uma vizinha com quem tinha combinado ir para a feira. Fechou a porta da casa e colocou a chave no postoiro, que nesta região designava o lugar secreto onde se guardava a chave. Dantes era comum cada fechadura ter apenas uma chave e, por isso, havia a necessidade de a colocar num lugar secreto para poder ser utilizada por todos os moradores da casa. 

     Quando as mulheres saíram, o Lourenço deixou passar algum tempo, desceu da cautelosamente da laranjeira, retirou a chave do postoiro, abriu a porta e começou a procurar o que pretendia: ouro. Levou metade do que encontrou. Considerava-se um ladrão com princípios e entendia que não devia deixar a vítima completamente depenada. Fechou a porta, voltou a colocar a chave no seu lugar e foi vender os objectos furtados a um ourives, um receptador que ele já conhecia doutras experiências anteriores, tão ladrão como ele. 

     As coisas não lhe correram tão bem no assalto que fez na companhia de outros três comparsas à igreja de Santo Tirso no dia 1 de Junho de 1887, na altura com 37 anos de idade. Alguém os viu entrar na igreja e avisou a polícia, que se deslocou para o local. Três dos quatro assaltantes foram presos nesse mesmo dia no local do crime. 

     Um dos quatro, António Dias, de 31 anos, de Mogege, provavelmente o que estava de vigia no exterior do templo, viu aproximar-se a polícia e conseguiu fugir, mas antes ainda teve tempo de avisar os seus companheiros. O Paulino Ferreira, de alcunha «O do relógio», de 27 anos, de Ruivães, e o João Dias, de 23 anos, de Joane, foram presos quando tentavam fugir. O Lourenço trepou para uma árvore e escondeu-se entre a ramagem, mas teve um golpe de má sorte: quando trepava deixou cair uma das alpercatas que levava calçadas, o que o denunciou.  Foram os três conduzidos à cadeia de Santo Tirso, que na altura ficava no Largo de Cidenai «por ordem do Delegado do Procurador Régio por serem encontrados de noite dentro da igreja desta vila, com fim de roubar, já tendo para isso algumas portas arrombadas com direcção à sacristia onde estava o maior valor», diz uma nota à margem de um documento daquela cadeia. Não chegaram a apossar-se de objecto algum, de forma que o conhecido roubo não passou de uma tentativa. 

     O António Dias, de alcunha «O Santa Marinha», que julgo ser irmão de João Dias, por ter a mesmo apelido e alcunha, foi preso em Famalicão e depois removido para Santo Tirso em 30 de Junho de 1887. Foram todos condenados, sendo a sentença lida em 17 de Novembro de 1887. O Lourenço e o Paulino tiveram as penas mais pesadas: oito anos de prisão maior celular ou doze anos de degredo em África; aos outros dois a pena aplicada foi de três anos e meio de prisão maior celular ou cinco anos e três meses de degredo em África. No dia 22 do mesmo mês e ano foram levados para a cadeia da Relação do Porto, onde já estivera um colega deles muito famoso, o Zé do Telhado.